can i not grasp them with a tighter clasp?

surtos e mais surtos do poeta torto:
nautas, no mar que nem marulha, nem ondeia,
leem livros e mais livros do amor de cada porto…
e o olhar triste que pelas páginas passeia
deixa dispersas as letras, os parágrafos, rotos.

a onda, que nem canta, nem berra,
leva consigo as diversas palavras escritas,
e retorna ao mar como quem se enterra
nas profundezas de paixões restritas…
na saudade de quem ficou na terra…

e o poeta, que tanto ama escrever e sonhar,
também não fala nem grita, pois não se atreve
a invadir a menor lembrança do amor que o fez chorar.
mas, além dos castelos de areia de quem escreve,
sempre haverá alguém que para sempre irá amar.

… e tantos outros

crepitantes como uma brasa infernal,
seus olhos lamentam nossas faces socialmente avançadas.
purismo não existe, já dizíamos as impuras,
e as pereiras devem ser evitadas.

línguas manicomiais, que saem de seus olhos
e só param ao agredir quem passa por vocês…
sexo é pecado na língua dos puros…
consentimento é heresia para alguma gente de bem…

o suposto lado delicado – entende-se: posto numa redoma,
desperta nos diabólicos, não nas fragilizadas, a loucura,
o delírio em uma mente que esperou a vida inteira pelo sexo impuro,
que nunca teve poder de escolha, voz, liberdade.

e admiram, e refletem, e imitam, num gesto quase homossexual,
outros puros, como fossem exclusividade, novidade ou… sei lá.
asfixiam-nos as pereiras, como se fossem venenosas. e algumas são.
mas não há como saber quais… até experimentar uma e vir a óbito.

e quem de nós passa, somente por passar,
por usar nosso suposto direito, sofre com o olhar de Cérbero,
guardião do Falo, dos puríssimos animais que nos rodeiam
– com seus anjos enrijecidos e linguagem crepitante.

e magoam-se como Deus se magoa com o mundo
quando negamos um beijo, um papo descontraído.
mas, ao evitarmos um, e sua face ser confundida com a escuridão,
outros porcos puros apontam o pau na nossa direção!

a uma pessoa bonita

eu te inventei,
e fui, igualmente, inventado.

à janela vazia, preenchi seus espaços,
colori tua vida, e a minha foi colorida também.

bebi um pouco de teu copo,
trocamos sorrisos que pareceram tão duradouros
quanto a juventude parece ser – na juventude.

mas nunca pensei que amaria, apesar de
teu amor ser verdadeiro.

nunca pensei que eu seria algo para alguém, pois
não me considero uma pessoa bonita.

porém, talvez só precisasse de um sorriso
para animar-me os dias; uma face para recordar-me
que a vida e seus amores são belos…

eu te amei,
e fui, igualmente, amado.

e já não tenho ímpeto para escrever coisas tristes.
escrevo, porque assim estive tempos atrás.

triste: assim sempre estive.
e vieste para levar as mágoas de meu coração.

e carregaste meu corpo quando ninguém mais conseguia,
e estendeste tua mão quando parecia que me afogaria.

Verme

Uma criança brada em mim,
e uma vez a cada ano tento
esganá-la com meus punhos,
quase milagrosos.

Os débeis e obsoletos globos,
com os quais olho e olhei
os parasitas me invadirem,
jazidos aqui como quem morre,
percorrem meu corpo sem pulsão de vida.

Um verme me devora,
porém devora pouco,
e as crateras que ele deixa
são os lugares em que me escondo,
neutralizando antigos amores indiscretos.

E só o que me resta é a lembrança
de meus tentáculos e escamas
sobre minha carcaça putrefata:
a cada ano tentando me esganar.

Espelho

minha face atordoada
e meu semblante inexpressivo,
tão frios quanto pés descalços
num dia de inverno qualquer;

os falsos sorrisos contagiantes
(ser feliz é ser para o outro?),
a amargura desamorada,
repleta de um irrepleto triste…

em mim, um homem sempre sorri
às tentativas corriqueiras de suicídios rotos…
e sorri, cotidianamente, sem propósito,
mas com uma alegria que chega a parecer verdadeira.

apenas cansado. estou cansado de tudo e todos.
ainda espero pelo dia em que irão me levar… e tenho medo!
a curta existência é sintetizada pelo teatral.
e, nisso, eu sou um artista excepcional.

minha face dormente,
tão sozinha, tão cansada de tudo,
e meus dedos oscilantes, grudentos
como o carvão que enfiaram em mim.

creio que para tudo deve-se pagar algo.
minhas cicatrizes, agora, são documento.
e a serenidade aparente que oculta meu coração em fragmentos
tem um preço.

mas devo ser muito importante para que não queiram
me perder.
entretanto, o que farão em seguida
(o que farão pelo medo?), senão a faísca, o isolamento…

os inimigos, os infernais inimigos,
que outrora julguei como queridos, estão mortos.
morrer é, sim, uma arte.
e, nisso, eu sou um artista excepcional.

Ninguém caminha só pela serra

Ninguém caminha só pela serra,
à sombra de um denso arvoredo.
O coração manso desfalece cedo
– onde toda a tristeza se enterra.

As roucas vozes trépidas da terra,
o sol acometido pelos figueiredos,
animais escondidos nos vinhedos,
a inquietação do ar em fria guerra.

Tudo é parte desta tenra natureza,
que há muito está me machucando
com seus trejeitos de dor e ausência.

Mas ela não ama, e está me magoando
com, apenas de ti, a abstinência,
pois me passa da alegria à tristeza.

Ansiedade

Faces me aproximam
da inquietação

Agora mesmo encontrei
o espelho de mim

Mas tudo é turvo
só há neblina

Enquanto meus dedos vibram
e o sangue corre e seca

Sinto o rosto frio e amargo
da doída derrota

Estou inflamado e pessoas passam
porém não posso tocá-las

E nada as invade
e nada as queima

Metempsicose

Escuta! – a face empalidece ao breve e violento pulsar do peito que estremece ao som de um coração lamacento. Estás a ouvir, porém jamais a perceber o que se conecta com teus ouvidos. Se pudesse ser outro, se pudesse admitir que a metempsicose sucede em si mesma, faria com que minha existência nunca se extinguisse, migraria de corpo em corpo, até que minha alma estivesse deveras atordoada pela vida.
Todavia, se eu te dissesse que ela realmente sucede em seus esforços, em sua estrutura e invasão, provavelmente não me escutarias. O distraído peca por não escutar. Tenho toda tua atenção? Ótimo. Assim posso te contar, com um sorriso estampado à face, a história por completo.
É precipitado dizer que sabia desde o início de seus efeitos. Nunca estudei esse tipo de ciência. Porém, meu logro esteve em acreditar piamente que poderia, com certo custo, ter minha alma transferida desta carcaça fétida em que me instalei a contragosto. Não a um animal, a uma planta – talvez atribuindo, assim, o caráter da reencarnação. Nunca acreditei em retrogradismos. Tornaria a existência mais interessante, portanto, pois vestiria outra máscara, teria outros trejeitos, ao assumir o corpo de outro homem.
Posso dizer, com tamanha credibilidade, que decerto havia algo que tentaria ocultar a transição, não homologando-a, contradizendo o que foi feito. Mas nunca haverá significação maior em meu ato do que o triunfo! Jamais pensei em trocar minhas vestes somente pelo trocar. O ódio à minha história, A repulsa a meu corpo… uma mente doente se conciliaria com a sanidade se houvesse uma chance de recomeçar. E sempre quis o recomeço.
Não haveria motivo de espanto, antes do acontecimento, se dissesse que eu era fortemente irritável, que não tinha pulsão de vida, que minha infância me castigara, e eu me punira para ver se alguma coisa mudaria com os efeitos de uma crise existencial aguda – silenciada, reprimida por quem mais me maltratou. Não! Jamais citarei nomes. Não há, pois, razão para elucubrar acerca das amolgações desta vida: sem vida e infeliz.
Sempre me disseram, até mesmo em minha nefasta infância, que eu era louco, que me mataria em troca de uma suposta redenção, que a insanidade me banharia com suas águas turvas e deveras agitadas. Não sabiam, porém, que estivera recluso e enfermo desde minha escolha.
A ideia de aderir à metempsicose surgiu quando minha enfermidade ascendeu. Estraçalhei minha autoestima; meus braços se fecharam para o mundo, e afastei todos os próximos e queridos de mim. Apesar de querer estar livre do terrível mal que me cercava, também queria estar sozinho e triste. A solidão me guiaria à iluminação, e, assim, poderia me transferir de toda a podridão de minha singular e doída existência. A tristeza seria meu álibi. Entretanto, as causas de minha sombria doença são desconhecidas. Tudo que sei é que a cura demoraria a vir, e provavelmente não suportaria, pensava eu à época, a angústia de viver.
A metempsicose sucederia em seus esforços, como dizia, evitando um prematuro suicídio despropositado. Teria propósito. Estavam todos errados, porque afirmavam minha loucura. Prefiro chamá-la Astúcia. Afirmavam minha confusão mental. Melhor nomeá-la “digressão”.
Enfim.
Numa loja de antiguidades, onde comprei minha primeira máquina de escrever, o vendedor, já senhor de idade, me deu um exemplar de um de seus maiores êxitos literários: uma abordagem muito fundamentada teoricamente, mas que deixava muito a desejar, na prática, a respeito dessa tão idealizada ciência. O livro mofado, entregue às traças, estivera, segundo seu dono, empoleirado em uma prateleira de madeira envernizada, em sua concisa biblioteca pessoal.
O pó se acumulava pelos cantos da loja. Tudo parecia retrógrado, inclusive minha presença, repleta de atrasos, que era, para mim, retrógrada o suficiente para me sentir sufocado pela energia negativa que se acumulava no recinto.
Virei para espiar pela janela o que acontecia lá fora: nada diferente – mas mais um assassinato estava por vir, pensei eu. O velho precisava morrer. Leigo, acreditava que, se duas almas morressem, poderiam trocar seus corpos, mesmo que o sofrimento fosse inerente a uma delas, e o contentamento, à outra. Ele se contentaria com um pouco de mágoas e amargura em sua nova vida. Eu não. Não sou do tipo de pessoa, se é que existem tipos, que suporta a dor.
Nunca estive indiferente, como diziam. Sempre me preocupei em sair de mim, em me ausentar do Eu. Infelizmente, nunca o consegui, e tudo que se foi, tudo o que sonhei e elucubrei… morreu… exceto aquele momento exato em que minha introspecção falou mais alto. Era O momento… Ao subir os estreitos, porém inúmeros, degraus, cercados por uma parede arcaica, feita com uma espécie de pedra especial, que não sei descrever, fui na frente do velho. Alguns poucos degraus nos separavam do topo da escada quando meu maior desejo tornou-se possível: empurrei, com nossos dois sorrisos – de ansiedade e desespero – o velho escada abaixo. O corpo foi rolando, rolando e pulando… Rá rá! Senti que seria uma pena retomar uma carcaça quase apodrecida e deveras machucada… mas a vontade, a febre e o delírio daquele instante fizeram com que percebesse uma coisa lá embaixo.
O velho viera a óbito.
Sentia que AQUELE era O momento! Mas nada parecia acontecer… Esperei horas, sentado à escada estreita, rodeada pela fria parede de pedra. Cogitei ME matar. Todavia, de nada adiantaria. Melhor fazer parte de uma doída existência do que não existir. E chutei aquele velho, esperneei… GRITEI! Porém nenhum efeito surtiria dali. Inútil! Acreditaste naquele ancião, e agora nada tens! Perdeste teu tempo – me recriminei.
……………………………………………………………………………………………………………….
O mundo todo amou antes de conhecer a amargura, menos eu. Nunca amei. Nem a mim. E, agora, devo prosseguir com o ritual…

O vendedor do trem/Gustavo

A terra desolada em que nos encontramos,
o descontentamento triste,
o “alguém mais?” decepcionado…

Ninguém quer comprar o hoje.
Não de você, garoto.

E o trem segue seu caminho,
repleto de pessoas cansadas:

cansadas de tanto pouco;
exaustas…

Mas ninguém nos leva a sério.
Não quando somos garotos.
Pobres, pretos. Criança pobre e preta…

Nasci branco. Mas com a alma decepada.
Sou maioria, sou vigente. Queria não ser?
Alguns querem enxergar com olhos iguais.

Mas ninguém leva a sério.
E o garoto me tocou. E eu não comprei seu hoje.
Não tinha dinheiro.

Porém, comprei. A empatia vale mais, eu acho.
Isso me faz lembrar do Gu.
Pobre, preto. E eu, realmente, o amo. E tenho saudade.

Quem será Gustavo quando crescer?
Terá seu hoje compartilhado, vendido, escravizado?
Criança pobre e preta.

Meus olhos suam. E o que fazer?
Eu, branco, vigente, o que posso fazer?
Desconstrução, amor, empatia.

De que isso tudo serve se ainda nos encontramos
em tanto desencontro – por esta terra desolada?
“Alguém mais” terá compaixão? Alguém?

Mas não amo o Gu por compaixão…
Talvez não seja suficiente.
Respeito, amor, igualdade…

Ele é meu igual, e muito mais feliz.
Continuará sendo? Só o tempo dirá…

Enquanto isso, aqui, suo gotas sinceras.
Choro o choro dos outros.
O que fazer?

– eu me pergunto.

 

Ode à alegria

Enquanto caminhávamos por lágrimas dispersas,
injuriou-me – com seu ar suntuoso e irascível.
E eu, sem ingenuidade, atirei-me nas reversas
ondas de seu oceano impassível.

Mas, tal qual comida olhada depois de comida,
ela me olhava – com esses trejeitos de poeta.
E o odor putrefato se ausentava da vida,
da melodramática existência indiscreta.

Alegria, alegria… nunca soube o que seria
esse estado de graça, banhando a tez.
Voa… voa, triste e densa melancolia…
caminha ao lado de outra aridez.

Por mim, fizeste muito. Criaste e reformulaste.
Deixa, portanto, a graça para mim…
Deixa de ser anjo para ser traste,
e faz a alegria caminhar comigo até o fim.