Escuta! – a face empalidece ao breve e violento pulsar do peito que estremece ao som de um coração lamacento. Estás a ouvir, porém jamais a perceber o que se conecta com teus ouvidos. Se pudesse ser outro, se pudesse admitir que a metempsicose sucede em si mesma, faria com que minha existência nunca se extinguisse, migraria de corpo em corpo, até que minha alma estivesse deveras atordoada pela vida.
Todavia, se eu te dissesse que ela realmente sucede em seus esforços, em sua estrutura e invasão, provavelmente não me escutarias. O distraído peca por não escutar. Tenho toda tua atenção? Ótimo. Assim posso te contar, com um sorriso estampado à face, a história por completo.
É precipitado dizer que sabia desde o início de seus efeitos. Nunca estudei esse tipo de ciência. Porém, meu logro esteve em acreditar piamente que poderia, com certo custo, ter minha alma transferida desta carcaça fétida em que me instalei a contragosto. Não a um animal, a uma planta – talvez atribuindo, assim, o caráter da reencarnação. Nunca acreditei em retrogradismos. Tornaria a existência mais interessante, portanto, pois vestiria outra máscara, teria outros trejeitos, ao assumir o corpo de outro homem.
Posso dizer, com tamanha credibilidade, que decerto havia algo que tentaria ocultar a transição, não homologando-a, contradizendo o que foi feito. Mas nunca haverá significação maior em meu ato do que o triunfo! Jamais pensei em trocar minhas vestes somente pelo trocar. O ódio à minha história, A repulsa a meu corpo… uma mente doente se conciliaria com a sanidade se houvesse uma chance de recomeçar. E sempre quis o recomeço.
Não haveria motivo de espanto, antes do acontecimento, se dissesse que eu era fortemente irritável, que não tinha pulsão de vida, que minha infância me castigara, e eu me punira para ver se alguma coisa mudaria com os efeitos de uma crise existencial aguda – silenciada, reprimida por quem mais me maltratou. Não! Jamais citarei nomes. Não há, pois, razão para elucubrar acerca das amolgações desta vida: sem vida e infeliz.
Sempre me disseram, até mesmo em minha nefasta infância, que eu era louco, que me mataria em troca de uma suposta redenção, que a insanidade me banharia com suas águas turvas e deveras agitadas. Não sabiam, porém, que estivera recluso e enfermo desde minha escolha.
A ideia de aderir à metempsicose surgiu quando minha enfermidade ascendeu. Estraçalhei minha autoestima; meus braços se fecharam para o mundo, e afastei todos os próximos e queridos de mim. Apesar de querer estar livre do terrível mal que me cercava, também queria estar sozinho e triste. A solidão me guiaria à iluminação, e, assim, poderia me transferir de toda a podridão de minha singular e doída existência. A tristeza seria meu álibi. Entretanto, as causas de minha sombria doença são desconhecidas. Tudo que sei é que a cura demoraria a vir, e provavelmente não suportaria, pensava eu à época, a angústia de viver.
A metempsicose sucederia em seus esforços, como dizia, evitando um prematuro suicídio despropositado. Teria propósito. Estavam todos errados, porque afirmavam minha loucura. Prefiro chamá-la Astúcia. Afirmavam minha confusão mental. Melhor nomeá-la “digressão”.
Enfim.
Numa loja de antiguidades, onde comprei minha primeira máquina de escrever, o vendedor, já senhor de idade, me deu um exemplar de um de seus maiores êxitos literários: uma abordagem muito fundamentada teoricamente, mas que deixava muito a desejar, na prática, a respeito dessa tão idealizada ciência. O livro mofado, entregue às traças, estivera, segundo seu dono, empoleirado em uma prateleira de madeira envernizada, em sua concisa biblioteca pessoal.
O pó se acumulava pelos cantos da loja. Tudo parecia retrógrado, inclusive minha presença, repleta de atrasos, que era, para mim, retrógrada o suficiente para me sentir sufocado pela energia negativa que se acumulava no recinto.
Virei para espiar pela janela o que acontecia lá fora: nada diferente – mas mais um assassinato estava por vir, pensei eu. O velho precisava morrer. Leigo, acreditava que, se duas almas morressem, poderiam trocar seus corpos, mesmo que o sofrimento fosse inerente a uma delas, e o contentamento, à outra. Ele se contentaria com um pouco de mágoas e amargura em sua nova vida. Eu não. Não sou do tipo de pessoa, se é que existem tipos, que suporta a dor.
Nunca estive indiferente, como diziam. Sempre me preocupei em sair de mim, em me ausentar do Eu. Infelizmente, nunca o consegui, e tudo que se foi, tudo o que sonhei e elucubrei… morreu… exceto aquele momento exato em que minha introspecção falou mais alto. Era O momento… Ao subir os estreitos, porém inúmeros, degraus, cercados por uma parede arcaica, feita com uma espécie de pedra especial, que não sei descrever, fui na frente do velho. Alguns poucos degraus nos separavam do topo da escada quando meu maior desejo tornou-se possível: empurrei, com nossos dois sorrisos – de ansiedade e desespero – o velho escada abaixo. O corpo foi rolando, rolando e pulando… Rá rá! Senti que seria uma pena retomar uma carcaça quase apodrecida e deveras machucada… mas a vontade, a febre e o delírio daquele instante fizeram com que percebesse uma coisa lá embaixo.
O velho viera a óbito.
Sentia que AQUELE era O momento! Mas nada parecia acontecer… Esperei horas, sentado à escada estreita, rodeada pela fria parede de pedra. Cogitei ME matar. Todavia, de nada adiantaria. Melhor fazer parte de uma doída existência do que não existir. E chutei aquele velho, esperneei… GRITEI! Porém nenhum efeito surtiria dali. Inútil! Acreditaste naquele ancião, e agora nada tens! Perdeste teu tempo – me recriminei.
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O mundo todo amou antes de conhecer a amargura, menos eu. Nunca amei. Nem a mim. E, agora, devo prosseguir com o ritual…