o que a poesia não explica

fugaz e sincero: é de esmero
que falo
ao encontro do olhar.

de tanto sorrir, começo a corar
– em plena admiração e desatino.
emudeço!
e em silêncio ouso amar
com a amplidão de um coração
menino.

suspiro em coragem e carinho:
ninguém anda na terra do selvagem
coração,
mas por aqui caminho.

então, na singelez de uma silenciosa prece,
tento desaparecer a timidez
– e ela desaparece,
pois o que admiro me admira e é feliz
e o motivo do meu sorriso
me responde com outro, e isso o verbal não diz…

isolado

manter-se calmo frente à tormenta da mudez,
enfrentar as águas deste temporal que se forma
em rabiscos ocos que choram livremente
pelas valas de meu coração despedaçado… impossível.

já não pretendo chorar, apesar de tudo.
as mágoas correm, libertas, pelas ladeiras do humor,
e em altos e baixos, construo uma identidade disforme
num antro de isolamento, sofrimento e ardor.

águas densas que carregam, ciclicamente, o que resiste
serão para sempre uma… sou uma poça de lágrimas secas,
pois essa aflição entregue à despaixão toca a poesia e o sentir,
extremamente insuficientes e fragilizados.

vejo em todos uma aura que não tenho. sou miserável:
a treva em mim se condensa sem o consolo de um verso…
mas até a vista turva, até a aura se ofusca
e encerro o que jamais comecei, neste restrito universo.

até que as paredes se aqueçam

as luzes irrigam as paredes brancas,
e apontam a umidade deste cubículo-quarto,
neste dia frio e angustiante.

no líquido emparedado, os desenhos talvez se formem.
vejo, talvez, uma casa em meio à neblina; talvez uma pessoa-silhueta.
não sei, realmente. nada sei. de tudo me esqueço. prefiro esquecer.

todos vêm e vão. passam e não conversam, parecem desesperados.
e nem ao menos sei quem são. não consigo. minha vista turva
não permite deduções.

parece que me disseram chamá-lo para uma rápida sessão.
talvez uma consulta. não sei. nada importa, realmente,
no estado em que me encontro. em que nos encontramos.

a vida é curta, e já se esgotou em mim. a cabeça marulha
com ondas imperceptíveis. a cabeça queima feito motor,
mas o carvão que resgatou os comprimidos já não arde. nada sinto.

quem sou eu? não sou ninguém. ninguém que importe, realmente.
e quem importará? quem se importará com os que já não querem viver
e são egoístas porque não podem fazer sofrer quem para sempre sofrerá?

estou assustado, mas não demonstro. acredito que meu rosto esteja sereno.
levaram minhas roupas, visto apenas um uniforme de paciente.
tudo que tenho é um corpo. tudo que tinha se foi.

os lençóis são muito finos para me aquecer neste frio de outono.
as luzes irrigam as paredes, e meu rosto de choro…
choro muito, mas ninguém vê. ninguém se importa, realmente.

tive paz durante toda minha vida. fui livre. fui sempre amado.
e o que tudo isso valeu? se não nos amamos, que amor curará
os traços e aspectos de nossas doenças mentais?

abro as mãos pela primeira vez após minutos de doída reflexão.
estou deitado, ainda, e não ouso levantar. muitos cabos e caninhos
me conectam ao mundo, de onde tentei escapar.

as mãos, abertas, com dedos bem afastados, se ruborizam,
mas logo se embranquecem, da cor da cama, da cor das paredes
e de quase tudo neste cubículo hospitalar.

meu universo é restrito, sei disso. mas ainda posso imaginar:
os desenhos das paredes talvez ainda não tenham se apagado.
e, por perdurarem, consigo lembrar-me. não esqueço. ainda não.

esconde-esconde

hora de se esconder      dirão aqueles que jamais liberaram uma gota de sangue qualquer no papel em branco     afiado e incessante     agora naquela coloração que conhece o mundo a partir de uma ferida que permanecerá incrustada na pele e na mente     trazendo pesar aos que perguntarem o que é isto e lembranças com desejo de esquecimento em meio à repulsa que causam no mundo     e por quê     perguntarão     porque não há ser inerte     não há quem não desperte atenção ou que não pense na misérrima condição humana     há     é claro     os que evitam pensar     mas quem são eles      perguntarão     você não sabe      tampouco sei eu      porém não hesito em dizer que são loucos e que se entregam à indisposição e à facilidade de uma existência não pensada e pautada apenas na obrigação      no gozo e no próprio esquecer      pois nem sequer tentaram fazer a curva      caminham em linha reta e para sempre e sempre sob os olhos de alguém que realmente tem ventríloquos que pensam que estamos exagerando     mas que     no fundo     viverão suas vidas sem ter pensado algo novo     sem ter criado algo novo     sem lembrar dos que utilizaram suas vidas para tornar outras vidas menos doídas     mais justas e prazerosas     por meio da arte e da reflexão     que não são desgostosas e sim uma maneira de atingir a plena existência num mundo e num tempo em que toda forma de pensamento está disponível – mas inatingível por falta de interesse

diálogo

gota a gota, as lágrimas se cansam.
talvez a cólera e a tristeza fossem necessárias
e precisas em um momento de frágeis
expectativas, do tipo que se estilhaça em milhões
de fragmentos e resulta em um poema cansado,
doído e extremamente pobre e inexato.

meu peito está inundado de amores
que jamais se amarão entre um e outro sentir.
descobri paisagens, pessoas, poemas e desenhos,
mas nunca descobri o verdadeiro amor,
aquele que não precisa de precisar
e existe na cumplicidade de seres distintos.

gota a gota, as lágrimas se cansam
e aprendo a dialogar com a dor.
conversamos muito, discutimos
nossa existência e amores: o meu, muito imaturo;
o dela, exatamente aproveitador. e então,
entoamos versos de indiscutível saudade e resignação:

somos outros, no mesmo. 
somos outros, no mesmo.

coesão

tecendo novamente, veja como se emaranham
e se espremem as ondinhas musicais no tecido.
feito espuma seca, numa rede de vastos ligamentos,
que não será vista em parte alguma,
inundam-se, abertas, as solidões num barco ao mundo.

mas diga que a mente se aquieta,
teça, teça, teça… enquanto tudo a seus pés
desmorona: o ruído dos recursos
caindo, a matéria fluindo… no mar calmo,
livremente, ninguém anda.

ondas permanecem marulhando, cerúleas!
e cê continua definhando. marulhar
não perturba! traz um caos decente
que mais parece azul. coração traiçoeiro,
mente vadia! o criador navegando pela cria

e o universo coeso das palavras permanece blue