Gira-gira

entrecortados, giramos a roda
gira rente, acelerando à enésima
roda veloz

ilude-nos
nesta fricção antro-imposta
com devaneios de inércia
sobre o tédio, o ódio, a sós

entrecortados, giramos a roda
gira-gira rente à degola
resgatando o play onde ríamos

e vivíamos as fendas doídas
nos joelhos infantes
balanço gangorra escorrega

gira-gira

e desde pequenos giramos
frente à ruína inevitável
semeada sob o véu do sucesso

girar inexoravelmente eterno
rente, acelerando à enésima
na roda veloz

surgem desejo-fantasias
reagindo amargamente
à fragmentação

contudo, humanos míopes
culpamos calos e não a roda

vertemo-nos ao que desconhecemos
porém talvez sejamos absolvidos:

vazios sempre anseiam compleição.

Manhã

no princípio havia trevas sobre as faces do abismo.
o céu e a terra e a luz e o verbo haviam
dentre as trincheiras dos olhos cerrados.
tudo neles ardia:
sal marítimo onda de lembranças
espuma colérica agudo ressentir
perdição hipotética estranhas profundezas.

e então dum beijo amanhecido nas pálpebras doídas
fez-se d’aquarela rosada ao gradiente laranja
ao azul-celeste mais esbranquiçado

a onda a onda a onda

aonde os olhos ainda ardidos do mar a perder-se de vista
marejados são à espuma, gentilmente.

Dois poemas de George Oppen (1908-1984)

Leviatã

George Oppen (1908 – 1984)
Tradução: Paulo Mielmiczuk (1995 –)

Verdade é também seu anseio:
Como a felicidade, e ela não surgirá.

Até o verso começa a corroer-se
No ácido. Anseio, anseio;

Um vento move-se breve,
Oscilando num círculo, muito frio.

Como deveríamos dizer?
Em discurso ordinário—

Devemos falar agora. Já estou incerto das palavras,
Do mecanismo do mundo. O que é inexplicável

É a “preponderância dos objetos”. As luzes do céu
Todo dia naquela predominância.

E nós retornamos ao presente.

Precisamos falar agora. Medo
É medo. Mas abandonamo-nos todos.


Leviathan

George Oppen (1908 – 1984)

Truth also is the pursuit of it:
Like happiness, and it will not stand.

Even the verse begins to eat away
In the acid. Pursuit, pursuit;

A wind moves a little,
Moving in a circle, very cold.

How shall we say?
In ordinary discourse—

We must talk now. I am no longer sure of the words,
The clockwork of the world. What is inexplicable

Is the ‘preponderance of objects.’ The sky lights
Daily with that predominance

And we have become the present.

We must talk now. Fear
Is fear. But we abandon one another.

O Fundador

George Oppen (1908 – 1984)
Tradução: Paulo Mielmiczuk (1995 –)

Porque ele não conseguiria encarar
Um dia inteiro
Do amanhecer

Ele deita-se tarde
Como privilegiados
Deitam-se na cama.

Contudo aqui como planejou
Seu vilarejo está
Sobrevivendo

À luz astronômica
Que desperta um povo
No doloroso amanhecer.

The Founder

George Oppen (1908 – 1984)

Because he could not face
A whole day
From dawn

He lay late
As the privileged
Lie in bed.

Yet here as he planned
Is the village
Enduring

The astronomic light
That wakes a people
In the painful dawn.

crise

sim, os sintomas sempre vêm

os sinos e seus badalares cabisbaixos e alheios
ao redor à mesmice o peito aperta o corpo
contrai em lembranças de tudo que esqueci
com nada aprendi a lidar e os olhos esperam

os flashes a um palmo inúmeros
mas o súbito apagamento hesita

sim, os sintomas sempre vêm
e vão

Suturas

há um outro posto onde há
um outro que te recomeça
ainda teu outro rosto
um outro talvez enalteça

mas ossos de seres noturnos
em teu outro eu que desfalece
outro rosto presente e soturno
o vão no rosto inda conhece

teu outro eu outro rosto será
outro eu não mais a sós
mentes mas não de todo já
és quem ampara e costura a voz.

Imperfeições

ou o masculinista

(alterado a partir da versão de outubro de 2018)

A alegria que me contagiava às vésperas de todos os meus aniversários era falsa, obtusa e eloquente, e eu aguardava ansiosa e docemente aquele entusiasmo, aquela felicidade momentânea materializada num breve instante de atenção individual. Sim, era sempre a minha hora. O filho pródigo ganhava um dia inteiro sob os olhares atentos de todos, todos os anos. Mas nada disso jamais fora o suficiente. A angústia e a agonia que no dia a dia me invadiam me transformavam neste mórbido e doente, acorrentado por lembranças tristes, pela melancolia extraída de tudo e pelos distúrbios criados na mente.

Naquele ano, na comemoração, naquela data tão especial e esperada, eu, aos meus dezessete anos, após longos dias de sinceros e apáticos solilóquios, resolvi que poria fim às mágoas de minha infância: meu pai não mais bateria em mim, não sofreria mais a troça e as ofensas de meus colegas de sala, não interpretaria a realidade passada como se fosse presente. Para isso, porém, precisaria pôr fim, também, àquilo que mais me maltratava e me imergia em infortúnios: a vida.

Horas se extinguiam dos relógios e a insanidade sussurrava em meus ouvidos: planejava meu aniquilamento e já me encontrava tão ensimesmado. O fim estava próximo, mas ainda cultivava um amor, que era a forma mais sincera de autodestruição. Poderia, claro, ressurgir um novo começo, mas talvez fosse desfeito por minha iminente cisão existencial.

…….. era seu nome. Tinha olhos cerúleos e melenas douradas como sol escaldante em mar cristalino, e seu olhar, que a mim dirigia, era doce, honesto e extrovertido, dicotomia de minha infelicidade. Em meio às colinas tortas e avenidas de seu corpo, perdi-me inundado em sorrisos resvalados. Breve e apaixonado, certa vez tive seus lábios nos meus, mas sempre paralelos e distantes, tão próximos e perdidos, sem rumo, solitários. Era por quem todos se apaixonavam, apesar da maior parte daquele sensível coração também ser parte do meu.

Noutro de meus aniversários, um sujeito a conquistou para eu nunca mais ser presenteado com seus poemas e versinhos. À vista daquela cena, meu contraído coração se apunhalou de angústia por ter sido apunhalado, e em meio à tristeza percebi que ela não tinha nome, não tinha alma, porquanto as sombras de seu coração escondiam-na sob o véu de seu próprio ser. Era apenas espectadora; apenas observava – em minúcias – a realidade que a cercava. Enquanto seus olhos moviam-se lentamente acerca de todos os detalhes, os meus, negros como a penumbra da noite em que nos encontrávamos, temiam ao contemplá-la ao longe. Ao longe. Ao longe. E escorriam e inundavam. E se iludiam, mentiam e caluniavam, pensando estarem sempre no centro: cogitando serem o alvo de todos os seus olhares. Mas não. Não era assim. Ela estava sempre olhando os pormenores – e eu queria ser gigante. Ela estava sempre atenta às perfeições – e eu era sempre o mais imperfeito.

Na incapacidade de lidar com o “não”, enquanto seus braços, cruzados, pareciam distantes, enquanto suas palavras deixavam de tocar meus ouvidos calados, enquanto minha face empalidecia pela dor da distância – eu a matei. E matei para que ninguém pudesse absorver o amor que dela emanava, para preservar meu orgulho e para manter aqueles olhos em meus domínios.

A partir de sua morte, minha loucura ascendeu. Mas nunca eu fora louco. Já não respirava como antes; já não enxergava o mundo com minhas retinas. Eram sempre as dela. Aqueles dois orbes resplendiam a beleza, a nostalgia e a melancolia em meu corpo. Recitavam versos, percebiam a cidade, e eu, ali, apenas observava o que acontecia nas miudezas do momento, cravando com unhas roídas meu eu em seu eu.

Um dia, sob chuva forte, fui visitar o local do sepulcro de minha amada, onde enterraria, após meses ocultando aquela carcaça apodrecida na treva de meu quarto, o amor de minha vida. Escolhi um cantinho em meu quintal, para ter sua companhia sempre que quisesse – desenterrando minha amada ou apenas me deitando sobre seu leito.

Sem nome, sem alma, ali refletia o que sempre me acompanhou: a morte interna que se externava e levava sua carcaça à terra fria e molhada. Ali mesmo cavei, com mãos suadas, cautelosamente, – para que não fosse visto ou ouvido -, até alcançar um lugar ideal. A terra molhada facilitava o trabalho árduo e por isso consegui alcançar o lugar onde despejaria todo meu amor. Antes de repousar o corpo naquele lamaçal dos diabos, atingi seus olhos com meus próprios punhos. Arranquei os glóbulos cerúleos, ainda conservados, apesar do tempo, e me alimentei deles. Assim, talvez incorporasse suas características, reavivando as minhas próprias, fazendo amor com minha amada pela última vez até nossa morte diversa nos separar.

Mais uma vez frustrado, precisava de alívio carnal; exorcizar os demônios que ainda me consumiam. A solução não foi imediata, mas encontrei paliativos nos pequenos rascunhos que teci em minha pele. O sangue escorria lindamente, numa espécie de amor-rubro, que me satisfazia e dava prazer, mas que nunca melhorou bosta nenhuma.

A alegria que me contagia em todos os meus aniversários é falsa, obtusa e eloquente, e eu aguardo ansiosa e docemente aquele entusiasmo, aquela aceitação momentânea, materializando-me no outro como um breve instante de atenção individual, nunca satisfeita. Sim, é sempre a minha hora. Tudo permanece próximo, mas eu, filho dos papéis que me atribuí, ainda não degluti os olhos de minúcias. Para a vida, não criei propósito: criei fim. Para mim, todo recomeço é ainda – e sempre – uma morte.

Amor

Um dia, quem sabe,
ele, que era sim meu bichinho,
apareça
num canto, recolhido e
sorrindo,
tal como agora está:
no retrato eternizo.
Ele é tão belo,
que, por certo, hão de execrá-lo.
Vosso Trigésimo Primeiro Século
sobreporá o enxame
de mil pragas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não surtido
estaremos unidos
em incontáveis auroras serenas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um salário,
endossando o absurdo imposto!
Ressuscita-me,
nem que seja só um abrigo!
Ressuscita-me!
Quero viver o início do que nos cabe!
Para que o amor não esteja mais sujeito
a ter que ser o que
um ou outro
idealiza.
Para que, maldizendo as amarras
de invejosas celas reacionárias,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o homem degrada,
não nos seja mais expropriado.
E que, ao primeiro apelo:
– Uni-nos!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das castas.
Para que doravante
o amor sejam:
o direito à Terra
e o direito ao Universo.

Releitura a partir da tradução de Augusto de Campos e Boris Schnaiderman do poema homônimo de Vladímir Maiakóvski, transcrita abaixo:

Colagem de Aleksandr Rodchenko (1891-1956) feita em 1923, para Sobre Isto, de Maiakóvski

Amor
Vladímir Maiakóvski (1893-1930)

Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zôo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.

anti-coach

indecifráveis formas geométricas surgem ao apertar
pálpebra e pálpebra à lembrança do aperto
: braços e braços e lábios e

há escuridão no que desconheço
liberdade a estas retinas viciadas
há escuridão no que não
reconheço

tudo fóton meio interpretado
meio ignorado
meio mé

resta a contração da face, o gotejar
lenços usados espalhados pela cama
: braços e pernas lábios e lágrimas
: corpo quente suor do aperto

o que foi??? nada
e realmente – interpretado, ignorado
                                          sentido

dor nomeada, cura encontrada?
linguagem porca, sofredor

quadrado e círculo?
                          triângulo?
         chiado?
                   triângulo e círculo
e círculo e quadrado?

há ausência no que desconheço
pálpebra e pálpebra à lembrança do aperto
: braços e braços e lábios e
scuridão