kintsukuroi

(a partir do homônimo de Anne Karine)

kintsukuroi

*
cacos de cerâmica
constante espatifar   
neles depositei-me
enclausurado
: liberto ao derrubar:

**
absoluto irreparável,
desfaz o que houve.

***
talvez a cicatriz concilie
onde nada há senão o que
mais.

Original da Anne:

kintsukuroi

*
queria ouro e laca
e ter aprendido com os
japoneses a consertar
vasos quebrados
:pro teu coração estragado:

**
deposita-o aqui,
onde rebenta o poema.

***
talvez um fio dourado se erga das ruínas da palavra
onde penso não haver
mais nada.

Três poemas de Attipate Krishnaswami Ramanujan (1929-1993), poeta indiano

On the Death of a Poem
A. K. Ramanujan (1929-1993)

Images consult
one
another,

a conscience-
stricken
jury,

and come
slowly
to a sentence

Da Morte de um Poema
A. K. Ramanujan (1929-1993)
Tradução: Paulo Mielmiczuk (1995 -)

Imagens consultam
uma
à outra,

um júri
consciente-
‘stremecido,

e vêm
serenas
a uma sentença

____________________

The Striders
A. K. Ramanujan (1929-1993)

And search
for certain thin-
stemmed, bubbled-eyed water bugs.
See them perch
on dry capillary legs
weightless
on the ripple skin
of a stream.

No, not only prophets
walk on water. This bug sits
on a landslide of lights
and drowns eye-
deep
into its tiny strip
of sky.

As Aranhas-D’Água
A. K. Ramanujan (1929-1993)
Tradução: Paulo Mielmiczuk (1995 -)

E busque
por certos insetos
d’água, olhos-de-bolha e tronco fino.
Veja-os pousar
em secas pernas capilares
levíssimos
na pele ondeada
do curso d’água.

Não, não só profetas
andam n’água. Este inseto senta
num deslize de luzes
e imerge olho-
intenso
em sua mera fatia
de céu.

____________________

Self-Portrait
A. K. Ramanujan (1929-1993)

I resemble everyone
but myself, and sometimes see
in shop-windows,
     despite the well-known laws
     of optics,
the portrait of a stranger,
date unknown,
often signed in a corner
by my father.

Autorretrato
A. K. Ramanujan (1929-1993)
Tradução: Paulo Mielmiczuk (1995 -)

Me pareço com todos
exceto eu mesmo, e vez ou outra
vejo nas vitrines,
     a despeito das consagradas leis
     da ótica,
o retrato de um estranho,
data incerta,
amiúde apontado na esquina
por meu pai.

Três poemas de José Agustín Goytisolo (1928 – 1999), poeta catalão

EQUIVOCOU SUA VIDA

José Agustín Goytisolo
Tradução: Paulo Mielmiczuk

Pessoas que julgava conhecer
mas não se lembra lhe saúdam:
Muito boa tarde. Todos bem em casa?
Uma guria alegre lhe dá um beijo.
As lojas mudaram de lugar
e as fachadas são de outras cores:
alguém borrou o anúncio do café.
As árvores são tílias e não bananeiras
e arrancaram os bancos da praça.
Onde estará sua casa? Este portal
não é; horas em branco. O que faz aqui?
Como se chama e quem está lhe seguindo?
Equivocou sua vida; não seu bairro.

EQUIVOCÓ SU VIDA

José Agustín Goytisolo

Personas que creía conocer
pero que no recuerda le saludan:
Muy buenas tardes. ¿Todos bien en casa?
Una muchacha alegre le da un beso.
Las tiendas han cambiado de lugar
y las fachadas son de otros colores:
alguien borró el anuncio del café.
Los árboles son tilos y no plátanos
y arrancaron los bancos de la plaza.
¿Dónde estará su casa? Este portal
no es; horas en blanco. ¿Qué hace aquí?
¿Cómo se llama y quién le está siguiendo?
Equivocó su vida; no su barrio.

«Las horas quemadas», 1996

Juan Goytisolo: Tríptico del mal

XIX PRECISAMENTE

José Agustín Goytisolo
Tradução: Paulo Mielmiczuk

Pensando em seu final
dizem alguns qualquer lugar
é bom
                    uma clareira
um buraco na vala
                                            o fogo o fumo
desfazer-se no mar. Porém eu
dado aos mitos e às ironias
prefiro imaginar
que haverei de corromper-me aqui
debaixo desta laje com teu nome inscrito
precisamente onde tu não estás.

XIX PRECISAMENTE

José Agustín Goytisolo

Pensando en su final
dicen algunos cualquier lugar
es bueno
                    un descampado
un hoyo en la cuneta
                                            el fuego el humo
deshacerse en el mar. Pero yo
dado a los mitos y a las ironías
prefiero imaginar
que habré de corromperme aquí
bajo esta losa con tu nombre inscrito
precisamente donde tú no estás.

«Final de un adios», 1984

_________________

É NECESSÁRIO

José Agustín Goytisolo
Tradução: Paulo Mielmiczuk

Para que surja um artista é necessário
que concorram algumas circunstâncias como estas:

que sua família esteja bem apadrinhada
que a mãe não conte seus desastres
que o pai deixe de comportar-se como uma besta
que o tirano da vez ame os livros
que os periodistas sejam misericordiosos
que ninguém defraude as esperanças
que não se fale em direitos humanos
que fechem os colégios e as prisões
que todo o mundo possa pisar a relva
que nenhum homem queira salvar os demais.

E por fim para que surja um artista se precisa
que nasça um filho e logo não morra do desgosto.

ES NECESARIO

José Agustín Goytisolo

Para que surja un artista es necesario
que concurran algunas circunstancias como éstas:

que su familia esté bien avenida
que la madre no cuente sus desastres
que el padre deje de comportarse como una bestia
que el tirano de turno ame los libros
que los periodistas sean misericordiosos
que nadie defraude las esperanzas
que no se hable de derechos humanos
que cierren los colegios y las cárceles
que todo el mundo pueda pisar el césped
que ningún hombre quiera salvar a los demás.

Y en fin para que surja un artista se precisa
que nazca un niño y luego no muera del disgusto.

«Sobre las circunstancias», 1983

Naufrágio – Paulo Mielmiczuk

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Imagem

SINOPSE: Segundo livro de Paulo Mielmiczuk, Naufrágio é angustiante. Conta com poemas que revelam a dor do eu lírico, ora amável e esperançoso, ora ácido e desiludido, frente à passagem da adolescência à vida adulta. Destaca-se a presença de desenhos de Suchetana Mukhopadhyay, artista da Índia, que não se colocam na função de espelho dos poemas, mas, sim, de ampliar as possibilidades estéticas e interpretativas da obra. A poesia pictórica de Suchetana exerce um papel significativo, pois se mescla com elementos de desamparo, solidão e de não-ser, presentes nos poemas textuais de Mielmiczuk. 

ISBN: 978-65-80103-94-2
97 pág.

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máquina de escrever (rotina)

acordar atordoado semi-dia raiado vejo o horizonte e
às margens da angústia de fazer nada em tudo o medo se esconde e
o rolo compressor responde “venha” incendiar mais-valia e
acordar atordoado semi-dia raiado não ver mais o porquê e
a palavra se esgota e a produção só aumenta esgotada de tanto viver e
às margens da vida a angústia em tudo em nada me escondo do medo e
o rolo compressor é aedo ressoa e ressoa e a pessoa estilhaça e
acordar raiado semi-esconde queimado mais-valia e
as margens da vida à lenha respondem e
o rolo esgota a pessoa de tanto esconder refúgio fora do beco.

vermelho de metila (-4,4)

a infância era aquela pilha vazada
num controle remoto perdido
numa sacola num armário amadeirado

fez-se: rubra e doce
de onde parto

e eu, em toda minha loucura, nunca estive
para além da química: o “não-louco” sofre
meus fenômenos, nunca criei realidades
que não fossem realidades que criamos

inventaram-me e minha infância inventei
o controle remoto não a sintoniza,
não percorre canais ou altera o volume.
serve só para arquivar meu registro alcalino

mas de pouco em pouco percebo a forja
e o punhal que utilizo para cavucar minhas feridas
escorre aqueles mesmos novos perfumes:
rubros e doces, da infância
do sangue, rubros, doces e alcalinos
como dizem.

naquela noite chorei

existe pele alva e pele alvo
– Emicida

um semáforo da praça charles miller trazia a criança preta
alvo de meus olhares. ofereceu doces a meus pais, alvos.
da janela do carro fechada às pressas ao seu aproximar
a criança preta ali ficou, enquanto o verde reluzia
e escapávamos ao imóvel olhar sem rumo através do vidro sujo.

não sei dela mais do que “a criança preta”
e se de novo meus olhos esbarraram aquele olhar
mutilado e infante e explorado triste e desesperado.
nunca saberei se de novo meus olhos de alvo
tiveram-na como alvo de meus olhos alvos.