Cena I
Noite. A cena se passa numa casa nobre da zona sul de São Paulo, onde, do lado de dentro, representado por uma única e imensa janela à esquerda do palco, estão os personagens, duas vozes, que discutem a poesia em suas vidas. A primeira é mais jovem, ainda na transição de uma voz mais trêmula e aguda a uma mais firme e grave, entretanto, mais poética e sedutora. A segunda, mais adulta e vigorosa, demonstra autoridade e opressão, não cedendo ao lirismo que a outra proporciona ao diálogo. Do lado de fora, à direita do palco, é visto um menino sentado nos degraus que levam à porta da frente, ouvindo a discussão. Sua figura não é nítida, apesar de haver uma fraca luz que ilumina vagamente o hall de entrada.
Primeira Voz
(receoso)… não sou poeta, não atuo ou recito,
entretanto, sei da maldita escuridão
que me imerge em sua imensidão,
e tudo que posso dizer é que… me excito.
Segunda Voz
(irritado) Basta! Chega dessa lírica enfadonha. Você já tem vários anos nas costas e precisa aprender a ser homem de verdade… realista! e provar que é digno de minha herança… Poesia não dá dinheiro, não traz amores… nem mesmo existe qualidade e preparo para um garoto medíocre e metido a destaque desse meio triste e risível, onde apenas os egos se exaltam e os clubinhos mais sólidos – (rindo, sarcástico) ah, os clubinhos! – é que têm vez. (firme) Um lambendo a bola e a caralha do outro! (mais baixo, aproximando-se) Agora, olhe para mim, meu filho: lutei muito para chegar onde estou: chorei, discuti, gritei e… cheguei. Então, de repente, surge um fedelho como você, com seus sonhos de artista. O que faz você para chegar onde quer chegar? Na verdade, o que você faz? Por mais que não doa a você: qualquer um torna-se poeta, ainda que com despreparo e tremenda falta de talento…
Primeira Voz
ó ladrão de minha infância
tenha um pouco de empatia
nada eu sei da poesia
a minha eterna inconstância
sob o meu sempre fracasso
envolto em treva e ausente
e escrevendo eloquente
vim à tona um palhaço
mas entenda: aqui há talento
sentimento e improviso
há riso? oras… é riso
meu público a mim atento
Segunda Voz
Há! (cobrindo o rosto com as mãos, em desdém)
Era só o que me faltava, falando em versos, quase cantando! Pare com essa miserável atuação: não me convence, tampouco conten…
Primeira Voz
(interrompendo-o, sonhador)
Está viva, pai!
Nunca ela morreu!
Mesmo que seus ais
Resistam ao meu
Canto, a alma aplaude
Trova e alaúde
Seu fremoso encanto
Segunda Voz
(impaciente) Eu não gosto MESMO! E estou farto dessa merda!
Sai de cena após ouvir-se passos irritados e o estrondo da porta da cozinha batendo
Cena 2
A luz do andar de cima acende, à Primeira Voz, apesar da figura não estar visível.
Primeira Voz
maldito pai, que sejas, sim, feliz
porém, desroube meus ecos…
e os cacos das letras que vivem em mim
de meu estancamento, inda em segredo:
“vai cedo, rapaz, vai cedo!”
é tudo que me dizem, e a tristeza
deturpa tudo que em mim é beleza
pois assombram-me a memória e o medo
e aqui já não posso chorar a ausência
o que fazer se obscuro é o pensamento?
triste fim de poeta remelento,
nada sinto, e em nada me inspiro
o que de mim surge é lamento
só se desmontam alegrias
e o tempo reflete a vastidão do vazio
neste outro peito carrancudo
mente inexata, fragmentária
encarei-me tanto e com severa profundidade
que me repulso, me consumo e desprezo
e o desgosto é tanto, que me nego
a amar além dos limites de mim mesmo,
derrapando cada vez mais para dentro
o abismo caminha em minha direção
e me inclino para ver seu aproximar
já não me vejo em seu fundo. nada vejo
senão a gorda face da derrota – sorrindo
vil e tenaz, ao tomar para si meus domínios
e toda vez me lembra que nela se atirou
um próspero garoto, repleto de brilho e vida
agora, diante dela se coloca um jovem sofrido
inadequado, eterno doente apesar de toda luta:
eu inóspito, incapaz de viver nesta miséria absoluta…
Ouve-se o balbuciar de vozes ilegíveis do lado de fora da casa. O Outro, que apenas escutava, agora se pronuncia, apesar do não-entendimento. A Primeira Voz abre a pequena janela do andar de cima, revelando a face de um outro menino – semelhante ao do lado de fora. A falta de nitidez, entretanto, faz com que um reluza a imagem do outro. O de dentro é mais novo que o de fora, causando a impressão de que o tempo passou para este e não para aquele.
Outro
Finalmente! Agora me escutas.
Estou aqui há muito tempo:
ouvindo, pensando e respondendo,
mas nada que falasse seria escutado,
pois só posso ser ouvido por ti
Aquele outro, que tanto mal nos causa
parece ser a fonte de toda a miséria (ri, debochado)
da qual te referes. Deixa eu te ajudar?
Está começando a chover,
Mas fala comigo sincero como ela, a chuva,
que cai como um soco na cara
… e aproveita e vê se abre essa porta
os livros estão se molhando aqui na mochila…
(sussurra) moleque mais fodido que sei lá, que merda… Preferia ter ido ver o filme do…
O Outro escala a parede e chega ao quarto do garoto. À luz mais forte, o que acabou de subir revela-se mais e mais, enquanto o garoto de dentro reluz a imagem mais nova do que acabou de entrar.
Outro
E então? Vai ficar me olhando? Se quer nude, vaza, only fans can have it…
Garoto
descobri-me estorvo
pária, parvo, parco, pobre
meu retrato é seguido
da densa cicatriz
e ris, infeliz, ris
do que falo
como falo
como amo…
se me calo
não tenho gana
se me dedico
em parte alguma
sou insensato
nem mesmo a poesia
o amor
as coloridas vidas ao meu redor
a arte e o esplendor
divino que as cercam
podem me organizar
descobri-me estorvo
e não há beleza que me cure
da vida que levo
e ris, desgraçado, ris
de tudo que te alcançou e não atingiu
meu mundo, em contraponto
foi-se embora e
se extinguiu.
Outro
Moleque, tu é chatão, mano… O que você vai fazer? Acabar conosco?
Garoto
Se for preciso…
Outro
Seria horrível tirar sua vida assim. Pense nas pessoas, que se preocupam, caladas… Lembre-se de que quem busca o autoaniquilamento não o quer: quer cessar a angústia e aflições.
Garoto
prefiro, então, em silêncio afastar-me;
de nada me valem as sombras e cruzes;
já não suporto corroer-me e odiar-me…
nada peca se não for banhado em luzes…
(apontando, ingênuo)
quem é você, afinal?
Outro
(rindo, imitando com voz desdenhosa) Quem é você, afinal? (sóbrio) Eu sou o Péricles, do Exalta. Puta merda, moleque leso: sou você, porra… Gente, me falavam que a base vinha forte, mas isso aqui tá inconcebível…
Garoto
Acredito no…
Outro
(interrompendo) Não começa, Wertherzinho, bora dar um jeito no papai…
Descem as escadas, o Outro empurrando o Garoto, que não hesita e não reage.
Cena 3
Madrugada. O Pai, deitado no sofá, sonolento, lamenta, quase dormindo . As luzes do andar de cima se desvanecem, porém, as da sala permanecem acesas.
Pai
Cansado… estou cansado desse moleque e suas fantasias. O que será no futuro? Como sustentará uma família? Se penso nele é porque me importo. Não basta ter talento enquanto eu não tiver dinheiro para patrociná-lo nessa jornada sem retorno. E o incerto sucesso? Estou cansado…
Fecha os olhos, e é possível ouvir, do quarto de seu filho, a voz ilógica de quem se entrega a um agitado sono profundo.
Pai
já… não…
eu sei…
é…. amiga…
ela… amiga…
também… ele…
e o Outro?
(acordando, irritadiço)
Cale-se, moleque! Não vê que é tarde e quero dormir?!
Garoto
(descendo as escadas, meia luz) Sei disso, pai.
Todas as luzes da casa se acendem, com exceção à luz do hall de entrada, que é apagada. A ilegível figura de um homem desce as escadas, mas não revela seu rosto, coberto com um lenço escuro, e discute com o Pai.
Homem
Cale-se você, seu merda!
Se você não teve infância, não condene as dos outros;
Seu filho é apenas uma criança!
É época de sonho, fantasia, devaneio…
Pai
(interrompendo, assustado) Quem é você?! E como entrou aqui?!
Homem
Venha, meu Eu.
Vamos mostrá-lo.
O Garoto abraça o Homem. Breu. ouve-se estrondo altíssimo e, depois de algum tempo, as luzes do hall de entrada se acendem, com os dois sentados nos degraus à porta principal. Silêncio. O Homem apresenta-se como um senhor de uns 60 anos. Passa tempos longamente reflexivos e então, de súbito, dispara para dentro da casa, quando ouve-se, estridente um longo…
PANO