Catedral

Em meio aos estrondosos pormenores de uma noite mal dormida, encontro-me neste triste estado frágil, nesta imensidão dum vazio absoluto, cansaço extremo de uma mente ininterrupta. Não pretendo me fortalecer, não quero, nem preciso, sanar as vaidades da condição humana. Alertar-me será o suficiente para passar a opor-me aos finos traços cansados e marcados com ferro nas peles dos rostos da gente. Que fazer, agora, para atenuar esse meu despertar adormecido? Que fazer, pergunto, para acender as luzes desta pequena catedral? Não. O escuro é propício à reflexão. Deixa-me aqui, irradiado em minha concepção de anoitecido, em meu introspectivo canto fantasmagórico. Antes, tudo me era satisfatório. Não me preocupava de todo, mantinha um padrão contínuo de falsa felicidade e a mais remota ideia de estorvo não era desenvolvida. Possivelmente, o que tinha comigo naquela época já era danoso, apesar da tranquilidade de um existir regado a pão e vinho: os perigos eram repelidos por um pulsar alheio, uma mão divina que zelava por mim.

Minha dor começou cedo, posso dizer, mas até então não fora diagnosticada por especialistas. Tive para mim a melancolia do infortúnio, e a desventura sempre se fez presente nos mínimos atos infantes. Frequentava uma pequena igreja que me acolheu com imensos braços abertos – como se fosse, de fato, filho de Deus. Apesar disso, nunca fui tão participativo. Sempre me retraía nos bancos do fundo, acompanhando a missa conforme os costumes. Jamais entendi o “significado maior” de tudo aquilo até que, um dia, resolvi sair. Levado a julgamento pelos que criam, sem uma sequer comoção, fui embora sem o respaldo que tinha quando era um deles.

Descontrole. Respiro. Descontrole. Sucumbir nunca esteve em meus planos carentes. Todavia, o que resta de mim são destroços de um poderio em ruínas. Refleti-me tanto em mim mesmo, que, olhe só para este inútil cadáver: sem bastar a si, farto de sua pérfida e abatida vida. Sim, sou uma mentira. Quem vê o papel rabiscado aqui e ali com mensagens e poemeros, quem percebe nítidos os desvios de olhar de quem se condensa tanto que se reprime? Quem percebe sou eu. E sou tão escasso e pobre, que a extinção poderia sanar toda a falta de cuidado e toda essa angústia que me dilaceram. Quando cria em Deus, tudo era perfeito. A realidade, entretanto, distante e apática, é mais um meio de se entregar ao devaneio, à ilusão. Sei que poderia confiar em Deus, mas Deus jamais confiaria em mim. Sou falho, e Ele nem tudo pode. Por exemplo, se eu pecasse, ele não me julgaria. Quem julgaria? O homem? Que se foda o homem. Que se foda Deus. Não tenho paciência para esperar a boa vontade de um salvador. Não tenho, sinceramente, vontade de esperá-lo. Por enquanto, devo arriscar cuidar de mim. Mas como fazê-lo enquanto atravesso uma crise aguda? Prefiro a derrota à fantasia, e, se tenho algum demônio, que venham me exorcizar. Pelo menos terei companhia em minha pequenez.

Na cabeceira, encontro uma foto de antigos amigos, cujos destinos desconheço. Eles caminharam sem mim e eu tropecei sem eles. Agora, outros amigos tomaram seu lugar, e eu os tomo até hoje. Cada belo comprimido… olho para eles com asco! Repudio medicações. Injetar falsa felicidade… felicidade não… talvez uma estabilidade falsa… é, para mim, triste. E a vergonha se instala nas lágrimas que derrapam por minhas maçãs do rosto. Desejo voltar ao passado, mas como voltar? Não quero tudo de volta, não quero a presença de sotainas em minha vida, e as próprias batinas e colarinhos sem gola me causam pavor. Talvez seja melhor desistir. Contudo, sem razão para viver, que razão teria eu para morrer? É tarde demais, o sofrimento está instalado, as relações, apesar do meu silêncio, estão instaladas… viver é complicado, mas morrer é impossível. Já não sonho ao dormir e minha escura catedral está em pedaços… Sinto que, se pudesse morrer hoje, permaneceria para sempre em absoluta escuridão. Para sempre permaneceria o mesmo.

poemero

Não direi saber-te…
sempre fomos diferentes,
até mesmo quando nada havia
senão amor.
Caminhaste,
triste, pelas sombras e esplendor,
e eu,
mutilado por uma estrada
divergente.

Nunca mais olhaste
para trás.
Nunca mais me viste.
E eu, acenando, gritei teu nome
sem resposta,
como solidão em casa repleta,
falsa alegria imposta,
chorei tudo que de ruim existe.

Agora escuto,
atento…
olho para trás e o que vejo?
A lembrança lacrimosa
em meus olhos mentirosos…
(ilusão de criança empática
aos toques amorosos
que se manifestam em abraço, carícia
e beijo).

E não me há um dia
em que esqueça
a saudade de tudo que
se passou ali:
Dentre outras,
fiz minha escolha,
dentre todas,
te escolhi.

um Outro, um Eu

Cena I


Noite. A cena se passa numa casa nobre da zona sul de São Paulo, onde, do lado de dentro, representado por uma única e imensa janela à esquerda do palco, estão os personagens, duas vozes, que discutem a poesia em suas vidas. A primeira é mais jovem, ainda na transição de uma voz mais trêmula e aguda a uma mais firme e grave, entretanto, mais poética e sedutora. A segunda, mais adulta e vigorosa, demonstra autoridade e opressão, não cedendo ao lirismo que a outra proporciona ao diálogo. Do lado de fora, à direita do palco, é visto um menino sentado nos degraus que levam à porta da frente, ouvindo a discussão. Sua figura não é nítida, apesar de haver uma fraca luz que ilumina vagamente o hall de entrada.

Primeira Voz

(receoso)… não sou poeta, não atuo ou recito,
entretanto, sei da maldita escuridão
que me imerge em sua imensidão,
e tudo que posso dizer é que… me excito.

Segunda Voz

(irritado) Basta! Chega dessa lírica enfadonha. Você já tem vários anos nas costas e precisa aprender a ser homem de verdade… realista! e provar que é digno de minha herança… Poesia não dá dinheiro, não traz amores… nem mesmo existe qualidade e preparo para um garoto medíocre e metido a destaque desse meio triste e risível, onde apenas os egos se exaltam e os clubinhos mais sólidos – (rindo, sarcástico) ah, os clubinhos! – é que têm vez. (firme) Um lambendo a bola e a caralha do outro! (mais baixo, aproximando-se) Agora, olhe para mim, meu filho: lutei muito para chegar onde estou: chorei, discuti, gritei e… cheguei. Então, de repente, surge um fedelho como você, com seus sonhos de artista. O que faz você para chegar onde quer chegar? Na verdade, o que você faz? Por mais que não doa a você: qualquer um torna-se poeta, ainda que com despreparo e tremenda falta de talento…

Primeira Voz

ó ladrão de minha infância
tenha um pouco de empatia
nada eu sei da poesia
a minha eterna inconstância

sob o meu sempre fracasso
envolto em treva e ausente
e escrevendo eloquente
vim à tona um palhaço

mas entenda: aqui há talento
sentimento e improviso
há riso? oras… é riso
meu público a mim atento

Segunda Voz

Há! (cobrindo o rosto com as mãos, em desdém)
Era só o que me faltava, falando em versos, quase cantando! Pare com essa miserável atuação: não me convence, tampouco conten…

Primeira Voz

(interrompendo-o, sonhador)
Está viva, pai!
Nunca ela morreu!
Mesmo que seus ais
Resistam ao meu
Canto, a alma aplaude
Trova e alaúde
Seu fremoso encanto

Segunda Voz

(impaciente) Eu não gosto MESMO! E estou farto dessa merda!

Sai de cena após ouvir-se passos irritados e o estrondo da porta da cozinha batendo

Cena 2


A luz do andar de cima acende, à
Primeira Voz, apesar da figura não estar visível.

Primeira Voz

maldito pai, que sejas, sim, feliz
porém, desroube meus ecos…
e os cacos das letras que vivem em mim

de meu estancamento, inda em segredo:
“vai cedo, rapaz, vai cedo!”
é tudo que me dizem, e a tristeza
deturpa tudo que em mim é beleza

pois assombram-me a memória e o medo
e aqui já não posso chorar a ausência
o que fazer se obscuro é o pensamento?
triste fim de poeta remelento,
nada sinto, e em nada me inspiro

o que de mim surge é lamento
só se desmontam alegrias
e o tempo reflete a vastidão do vazio
neste outro peito carrancudo
mente inexata, fragmentária

encarei-me tanto e com severa profundidade
que me repulso, me consumo e desprezo
e o desgosto é tanto, que me nego
a amar além dos limites de mim mesmo,
derrapando cada vez mais para dentro

o abismo caminha em minha direção
e me inclino para ver seu aproximar
já não me vejo em seu fundo. nada vejo
senão a gorda face da derrota – sorrindo
vil e tenaz, ao tomar para si meus domínios

e toda vez me lembra que nela se atirou
um próspero garoto, repleto de brilho e vida
agora, diante dela se coloca um jovem sofrido
inadequado, eterno doente apesar de toda luta:
eu inóspito, incapaz de viver nesta miséria absoluta…

Ouve-se o balbuciar de vozes ilegíveis do lado de fora da casa. O Outro, que apenas escutava, agora se pronuncia, apesar do não-entendimento. A Primeira Voz abre a pequena janela do andar de cima, revelando a face de um outro menino – semelhante ao do lado de fora. A falta de nitidez, entretanto, faz com que um reluza a imagem do outro. O de dentro é mais novo que o de fora, causando a impressão de que o tempo passou para este e não para aquele.

Outro

Finalmente! Agora me escutas.
Estou aqui há muito tempo:
ouvindo, pensando e respondendo,
mas nada que falasse seria escutado,
pois só posso ser ouvido por ti

Aquele outro, que tanto mal nos causa
parece ser a fonte de toda a miséria (ri, debochado)
da qual te referes. Deixa eu te ajudar?
Está começando a chover,
Mas fala comigo sincero como ela, a chuva,
que cai como um soco na cara
… e aproveita e vê se abre essa porta
os livros estão se molhando aqui na mochila…

(sussurra) moleque mais fodido que sei lá, que merda… Preferia ter ido ver o filme do…

O Outro escala a parede e chega ao quarto do garoto. À luz mais forte, o que acabou de subir revela-se mais e mais, enquanto o garoto de dentro reluz a imagem mais nova do que acabou de entrar.

Outro

E então? Vai ficar me olhando? Se quer nude, vaza, only fans can have it

Garoto

descobri-me estorvo
pária, parvo, parco, pobre
meu retrato é seguido
da densa cicatriz
e ris, infeliz, ris
do que falo
como falo
como amo…

se me calo
não tenho gana
se me dedico
em parte alguma
sou insensato

nem mesmo a poesia
o amor
as coloridas vidas ao meu redor
a arte e o esplendor
divino que as cercam
podem me organizar

descobri-me estorvo
e não há beleza que me cure
da vida que levo
e ris, desgraçado, ris
de tudo que te alcançou e não atingiu
meu mundo, em contraponto
foi-se embora e
se extinguiu.

Outro

Moleque, tu é chatão, mano… O que você vai fazer? Acabar conosco?

Garoto

Se for preciso…

Outro

Seria horrível tirar sua vida assim. Pense nas pessoas, que se preocupam, caladas… Lembre-se de que quem busca o autoaniquilamento não o quer: quer cessar a angústia e aflições.

Garoto

prefiro, então, em silêncio afastar-me;
de nada me valem as sombras e cruzes;
já não suporto corroer-me e odiar-me…
nada peca se não for banhado em luzes…

(apontando, ingênuo)
quem é você, afinal?

Outro

(rindo, imitando com voz desdenhosa) Quem é você, afinal? (sóbrio) Eu sou o Péricles, do Exalta. Puta merda, moleque leso: sou você, porra… Gente, me falavam que a base vinha forte, mas isso aqui tá inconcebível…

Garoto

Acredito no…

Outro

(interrompendo) Não começa, Wertherzinho, bora dar um jeito no papai…

Descem as escadas, o Outro empurrando o Garoto, que não hesita e não reage.

Cena 3

Madrugada. O Pai, deitado no sofá, sonolento, lamenta, quase dormindoAs luzes do andar de cima se desvanecem, porém, as da sala permanecem acesas. 

Pai

Cansado… estou cansado desse moleque e suas fantasias. O que será no futuro? Como sustentará uma família? Se penso nele é porque me importo. Não basta ter talento enquanto eu não tiver dinheiro para patrociná-lo nessa jornada sem retorno. E o incerto sucesso? Estou cansado…

Fecha os olhos, e é possível ouvir, do quarto de seu filho, a voz ilógica de quem se entrega a um agitado sono profundo.

Pai

já… não…
eu sei…
é…. amiga…
ela… amiga…
também… ele…
e o Outro?

(acordando, irritadiço)
Cale-se, moleque! Não vê que é tarde e quero dormir?!

Garoto

(descendo as escadas, meia luz) Sei disso, pai.

Todas as luzes da casa se acendem, com exceção à luz do hall de entrada, que é apagada. A ilegível figura de um homem desce as escadas, mas não revela seu rosto, coberto com um lenço escuro, e discute com o Pai.

Homem

Cale-se você, seu merda!
Se você não teve infância, não condene as dos outros;
Seu filho é apenas uma criança!
É época de sonho, fantasia, devaneio…

Pai

(interrompendo, assustado) Quem é você?! E como entrou aqui?!

Homem

Venha, meu Eu.
Vamos mostrá-lo.

O Garoto abraça o Homem. Breu. ouve-se estrondo altíssimo e, depois de algum tempo, as luzes do hall de entrada se acendem, com os dois sentados nos degraus à porta principal. Silêncio. O Homem apresenta-se como um senhor de uns 60 anos. Passa tempos longamente reflexivos e então, de súbito, dispara para dentro da casa, quando ouve-se, estridente um longo…

PANO

mar

navego em meu mar de emoções
feito de relações desgastadas:
antigos amores, familiares,
pessoas queridas que, pela vida,
estão sempre afastadas.

caravelas lacrimejam rastros,
na proa, nos mastros:
o mar me separa, feito ferida salgada,
dos outros, e, de repente, não são
mais queridos como eu imaginava.

sorri ao ideal de alegria
quando pensei ver terra:
era mais uma ilusão:
outra nau vai navegando,
mas vem se aproximando em vão.

para se redescobrir na solidão,
não é preciso muito, somente
uma vasta e dura reflexão:
se o mar seca e a terra é imensa,
não há caminho que não leve a alguma direção.

portanto, navego, desgastado,
nesse doído mar em mim encrustado:
e os antigos que vi são somente meus:
é triste se despedir, mas preciso logo…
mesmo jamais dizendo adeus.

ainda

sangro a cada duradouro pulsar,
e encontro o solitário estancamento
em segredo, como um tratamento
de um imparável e doído sangrar:

mas é inútil.

a ferida abre-se ao cansaço do mundo,
e invado meu próprio território abissal.
triste, irremediavelmente vagabundo…
que faço? espero a cura do iminente final.

Weltschmerz

esta voz, que nunca chorou,
apesar de doída, ama e concede
ao outro um espaço em si.
e, outrora crescida, esta voz
jorra agonias, confiando
na palingenesia um recomeço.
mas o vazio, a ansiedade
e as dores sempre retornam,
e não haverá alma mais fresca
que abaterá os danos
de uma existência sem fim.

minha voz, esta, está cada vez mais
paralisada em uma única circunstância.
solilóquios permitem que outras
permitam-se invadi-la, porém,
sem saber de mim, como saber de outras?
ainda amo, ainda concedo espaços em mim.
e sei dos perigos da entrega…
quem irá me salvar se eu me afogar no eu?
amar é interesse, concluo.
amor é convenção.
amo porque preciso, e me amam, se amam,
porque precisam. pois não suportam
o cansaço que tudo propõe e ordena.

farto, o basta me parece próximo.
todavia, tenho medo do basta nunca
ser o bastante, pois a arte já não é catarse;
já não tenho sonhos ou interesses.
o amor, que antes me parecia sublime,
agora se entrega aos feitiços da melancolia:
a perdição está perdida.

não tenho motivos para morrer, tampouco para viver.
quem não se atreve já é um derrotado.
atrevi-me, e colhi os frutos de uma vida mal vivida,
uma existência, um fardo, e me derrotei,
com tanto pesar, que agora sou um eterno fosco:
singularmente opaco.

e mesmo que acabe com as circunstâncias, mesmo que atinja a iluminação,
quem ousaria dizer que ousei tarde demais?
quem ousaria dizer que fracassei?
morrer por suas próprias mãos é, sim, e infelizmente, motivo de julgamento.

evolução psicológica é um erro irreversível.
um péssimo “apesar de tudo, aconteço”.
e os outros nada percebem… por que eu deveria?

minhas vozes, tão fracas, adoecem.
o amor, doído e inútil, tendo em vista
o olhar efêmero e realista,
e a voz, rouca e rasgada, permanecem.

não há fim senão o começo.