good vibes?

a noite é o repouso que almejo
(tanta espera na existência)
ontem se foi
o que me resta é quando.

e é tarde e amanhã não
hoje talvez chova e haja alagamentos
uma árvore talvez caia sobre o carro de Matilde
e dona Maria perca o filho João num barranco deslizado

mas ao fim do dia
o curso de Matilde diz que a chuva que escurece
é também a que refresca – e em tudo dai Graça.

céu de brigadeiro, como dizem.

para dona Maria, o dia apenas começa
e o curso de Matilde propõe pensar diferente.

o problema é que dona Maria não come brigadeiro,
é alérgica? não gosta? nem com chocolate belga?

não, Matilde.

ela cozinha com lenha; faz anos que esqueceu o achocolatado
e já não reconhece nem os grãos de arroz que não jogaram nela e no esposo
que a traiu e espancou
e abandonou os cinco filhos, dentre os quais João
sumido.

viver não é palestra.
viver custa, Matilde.

amanhã há de ser outro dia,
mas hoje o pastor da congregação vai profetizar um futuro de bênçãos
e Maria já separou 10% dos parcos recebimentos para o dízimo.

ao fim do dia, contudo
quem passa a cestinha é o marido de Matilde.

Colonialismo

Fizeste teus pés sobre o leão e a áspide
e seus filhos calcados sob mim.
Peçonha de áspides debaixo dos lábios?
Keket na cruz, no ouro e no marfim.
Tudo colocaste debaixo dos pés
e teu véu destinaste a quem não te era.
Keket fizeste Keket,
no Vale dos Reis, silêncio. Meretseger.

[SEM TÍTULO]

p

pensam
(se isso ou [
se fosse menino e ouvisse os pássaros
se menino fosse
capaz de ouvi-los e vê-los, sabê-los
dos bicos às penas,
dos timbres às cores e tamanhos
e se
] aquilo fosse mesmo relevante,
o vão estancaria o vão entreaberto
o portal submundo donde abalam e gritam
e soluçam e transitam almas vadias
que do sêmen do sumo do torpor do consumo
rearranjam-se [ em
ninhos, abertos de tudo
aguardando
o mastigar da matriarca, as plumas e escumas e
então o farfalhar eufórico e o voo presente
no todo futuro olvidado]
)
enfim, libertam-se.

soneto cotidiano

me vê dois frango, Tonin,
dois li de leite,
fejão,
                               quele negóço assim
cua plantem cima,
                                                     não,
                                                     como é memo?
sei lá,

dexa prouta, que meu fim
                                 é a
                                                     ó ali u Sergin
nem sei mais comele tá…


                                                      algo mais? crédito o…


o valter não me dexem paiz
toda veiz o “vô, num vô”…
                                                      mas, né?
ainda é rapaiz…
ai
                                                      falo muito,

já vô pra casa,
                          gastei de mais.

_______________________

soneto cotidiano
(versão “montadinha”)

me vê dois frango, Tonin,
dois li de leite, fejão,
quele negóço assim
cua plantem cima, não,

como é memo? sei lá,
dexa prouta, que meu fim
é a… ó ali u Sergin…
nem sei mais comele tá…

algo mais? crédito o…
o valter não me dexem paiz
toda veiz o “vô, num vô”…

mas, né? ainda é rapaiz…
ai falo muito, já vô
pra casa, gastei de mais.


[sem título]

soçobraste-me
e nasci sem escolher
doí-me a lágrima
escorrida no coração acorrentado
n’ardido oceano salgado.

humano arrependimento
quem existe é triste
, profético
tesouro condenado à clausura
do náufrago olvidado.

eras rajada e transtorno
eu ciclone e maremoto

e a fissura (ir)rompia no seio habitado e
retirando-me o sal da espuma da onda
colérica do ventre rebentado
imergias em mim
corso aos olhos da terra
corsário em navio saqueado.

Caracol

incerto de mim,
unhas roídas caminhei pela parede
onde rabiscava o caracol
seu fino traço incolor

ranzinza de tudo
resmungando atrasos da vida
e a eterna espera de nada
peso imenso nas costas flácidas.

toquei sua campainha, e se escondeu
“não tem ninguém!”
e ali ficou até ter partido.

à noitinha, quando chegava quase ao rodapé
também ninguém aqui havia
e assim fui-me só a resmungar e rabiscar minha vida.

brasil

ausente o pai respinga
gota-oceano de poça
no buraco-asfalto do peito

barrancos vários
barracos aflitos
meninos desditos
ressecam o seio

preto leite
leite reles, leite ralo
leite seco

a ira viera e vingara
exposta fratura oculta pro resto
meninos secos reles e ralos
sem pais e vidas e halos
deglutição de destino indigesto.

Aquarela revisitada

aos camaradas Alan e Pablo

Numa folha qualquer
a mão destra desenha um duelo
que rabisca e chuvisca
e rebaixa a foice e o martelo

Com o lápis em torno
da cifra ela fica abatida
Mas se vale dinheiro
o dindim sobrepõe-se a uma vida

Se é um pouquinho retinta
vem um soldadinho queimar do papel
Num instante imagino
a artista fazendo um escarcéu

Vai negando, contornando
a imensa luta norte-sul
Vai com ela enganando
que pobre é salvo por rico

Pinto um barco a vela
Branco navegando
Tanto preto e mar
é racismo

Entre as odes, vem surgindo
uma ideal pra te fisgar
Tudo em volta colorindo
mas o preto: esbranquiçar

Basta imaginar e ela está agindo
o mundo destruindo
mas se a gente quiser
o povo vencerá

Numa folha qualquer
a mão destra se cristianiza
Com os seus julgamentos
burguesa, se imbeciliza

De uma África a outra
consegue assolar num segundo
Gira um simples compasso
e com grana desfaz-se do mundo

Com menino nazista
a saída é chegar-lhe no murro
E ali logo em frente a esperar
pela gente, relativizar

E o futuro é vermelho
e dele iremos desfrutar
Não tem casta, iniquidade
mas tem logo que começar

Sem pedir licença
muda nossa vida
tchau tchau, querida
não hás de voltar

Pr’essa estrada que nos cabe
temos que nos conscientizar
O fim dela ninguém sabe
e é preciso arriscar

Vamos todos
numa junta proletária
de uma batalha que um dia enfim
o povo vencerá

Numa folha qualquer
a mão destra desenha um duelo
(e o povo vencerá)
que rabisca e chuvisca
e rebaixa a foice e o martelo
(e o povo vencerá)

Gira um simples compasso
e com grana desfaz-se do mundo
(e o povo vencerá)
(e o povo vencerá)

Reviver

Jardim de margaridas, seiva de agulheiro
vazio imenso, consenso implacável
Raízes decepadas, oleandro em aguaceiro
a plântula nos unia e se ruía, findável

antera tubo estigma estilete
pétala carpelo sépala estame
ovário pedúnculo pistilo e filete
raiz fasciculada que verteu-se pivotante

Feixes vasculares ineptos e dispersos
nulos cotilédones polén abertura
Estruturas-nada, ausentes do universo
folhas opacas e venação de lisura.

Resto decepado na terra imerso,
recria-se vida e remove-se agrura.