Súbito

Então, subitamente, devo permanecer neste breu que me rodeia. Alguns me alertaram, sem compreender, dos males da escuridão, do aterro de sonhos despedaçados, dos mistérios que o vazio no peito pode causar. Males que somente o empírico pode deduzir e somente o viver pode prover. Mas já não vejo importância, não, em relatos, testemunhos, depoimentos. Jaz um enigma em meu coração – encoberto pelo lamaçal desta desgraça: “Como permanecer?”, perguntas. Sabe, a curiosidade em achar respostas é contínua. Tão contínua, porém, que ninguém acaba prestando a devida atenção ao que se fala. Talvez perguntem, talvez sejas tu, se não poderia não ter convidado o breu para ficar. Oras, não o convidei, jamais tive interesse em convites! Talvez não tenha tido suficientes para poder me interessar. De qualquer forma, já sinto o cheiro de carniça atingir, como num golpe, o olfato. Sinto tanto, tanto, tanto por ser uma decepção. Por frustrar e ser frustrado. Deixem-me em paz! Os erros já sei de cor! Tristeza, a minha, não poder dirigir uma palavra de ódio aos que me fizeram sofrer, e o afago e carinho aos que me fizeram, ao menos uma vez, chorar de alegria. Sou, simplesmente, indiferente. Ir-me ou permanecer, sei, a ti já não faz diferença. Somente “te preocupas” por estarmos amarrados numa mesma fração da História. E ainda acham que o melhor para mim seria voltar para casa. Rá! Minha casa! Rá Rá Rá! Lá só existem loucos! Eu, o maior deles, é claro, seguido da velha que me pariu, dos dois ausentes de minha existência e da desbocada que fala o que pensa, mas nunca pensa para falar. Prefiro o frio desta noite, do breu aconchegante. Olho fixamente e frequentemente, devorado pela mistura de cólera e nostalgia, e abraço minhas pernas, enquanto sento e leio, sem me preocupar, cartazes colados em postes de luz: “procura-se”… e minha foto e telefone de casa. Caminho muito, é verdade, nunca vão me encontrar. Nem quero. Para quê? Para compor uma… uma… família?! Isso não existe. Nunca existiu. Somente a ilusão de que tudo é belo se permanecemos calados. Só, perto do fim, fico muito mais tranquilo. Poderia até escrever coisas alegres, bonitinhas, que fossem vendidas e compradas aqui e ali como meus contemporâneos destinados ao olvido. Agora deixe-me dormir! Dormirei sob o vazio de minha existência e jamais acordarei. Devo permanecer neste breu que me rodeia.

Crescer nunca foi um dos meus planos

O que importa em quem fala senão quem escuta. Não negarei, não, sei que há muito tenho evitado a questão, mas não negarei. Viver é pesadelo atrás de pesadelo – em forma de débitos; mente doente; corpo ineficaz, que se move e se inertiza de acordo com o grau de medo que temos; nossa casa inabitável; nossos sonhos em mundos distintos, que se agonizam a cada dia que passa até não haver idealizar, esperançar… ou seja, inertes… até nossos sonhos, nossas utopias.

E como partir se já nos estabelecemos em lugar nenhum? Qual a garantia de que não penhoraremos até nossos vazios, nossas angústias…

Quando fui, vi a luz de minha infância criar projetos, trilhar caminhos inimagináveis para uma criança, aos olhos de um adulto, sempre sob os olhos de Cristo. E, conforme envelheci, aprendi a inimaginar. O sucesso me é escasso; o vazio me absorve, e estou absorto nesta terrível procrastinação – comum aos que não desejam viver. E isso, o que seria? Para mim, suportar: dar suporte, dar lugar a quem nada terá senão o nada; e aguentar… sempre… mais um pouco. Viver é cobrir os ouvidos numa cama vazia de um quarto escuro e escutar o marulhar de ondas imaginadas a ressoar a dedução de quem escuta; é deitar de bruços e desejar alguém até adormecer sem o abraço e os beijos de outrem; é andar para lá e para cá, com a cabeça altiva, a contemplar os detalhes que nos perseguem sem que os persigamos.

Problemas existem: a escassez de dinheiro para matricular os filhos na escola, a demência provocada por uma depressão severa e contínua, a descoberta da ausência de um deus abstrato para sanar as dificuldades concretas (e, se houver um deus concreto, que ele surja para nos salvar!), entre outros.

Imundos! Ratos! Acéfalos! Idiotas! e…. e… preciso parar com isso. Almas descaminham conforme crescem, pois são redeadas pelos frustrados de outrora. Libertem-me! Libertem-se! Aqui só há dor, só há o suportar, só há… só há… quem escuta?

Quem escuta? Terei eu razão para continuar vivendo? Serei eu um pessimista? Você, talvez, nem exista, afinal. São todos invisíveis. Cada vez mais conectados, cada vez mais solitários, mais redeados, mudos, enfim. Pouco importa senão quem escuta toda esta ladainha. Tudo que resta é me livrar de toda a poesia. Falar, falar, falar, escrever, escrever e vomitar tudo que resta dentro do peito. Senão, não aguento, não suporto, e, consequentemente, não vivo.

Pronto, tudo vale a pena se termina em um poema:

e tudo acaba uma hora,
tudo acaba, e acabo assim,
como mera lembrança
para os que ficam;
como triste criança
para os que não.

sonharei alto agora,
pois a miséria corrói o fim,
e recomeça em solidão,
que se agoniza e se reconstrói
em pura e amistosa harmonia:
presente do poeta
para os putos que se vão.

lixo

escrevi minhas angústias,
minhas frustrações
e as vezes em que me decepcionei
num péssimo poema,
que jamais alcançará seus olhos
antes de se apagar na chama
de uma alma despreparada
para tanto sentimento.

escrevi tudo,
e as toxinas se impregnaram
em minha mão:
como a vez em que toquei para uma
platéia vazia,
platéia tóxica, cujos aplausos
pude imaginar –
me induzindo à clausura,
à sufocante clausura da mente.

Além

Sabes que te escuto
além do defeito e aparência;
que te amo, em absoluto,
além do afeto e da carência…

que és a perfeita imperfeição
a quem destino versos de desejo e saudade;
minha confidente, minha amiga, coração…
te amarei ainda após a eternidade.

Embora traga comigo a obscura face
dos tempos idos em tristeza,
e ti encontro alento, alguém que abrace
os pormenores de nossa invejada beleza.

E, quando se despede cada olhar,
nasce um instante incerto e intenso,
mas sei que em ti posso hospedar
meu mais bonito amor imenso.

no dia seguinte

de manhãzinha, a face no espelho
não diz
não ressoa
não sinaliza
coisa alguma senão a insuportável
enxaqueca, cólica e cólera aos indeléveis
machucados em seu rosto sangrento.

de manhãzinha, a face no espelho
não escreve
não ouve
não diz
coisa alguma com coisa alguma,

sente vergonha por ser quem é;
sente ser frágil por ser o que é…

e em meio à ebulição de tormentos,
a mesma face ecoa em sua mente,
acompanhada das garras de meus semelhantes.

logo,

sinto vergonha por ser o que sou;
sinto ser frágil por ser quem sou.

enquanto me divirto à noite
e saio tarde para divertidas noitadas,
aquela triste face no espelho
se arrepende por ser o que é…

mesmo não tendo culpa por essa odiosa sina,
ela esconde seu rosto com o abraço nas pernas,

e cobre seu útero com suas próprias mãos atadas.

fui abandonado com uma dose de descaso

jamais pensei que seria uma palavra tão frequente em minha vida adulta. melhor traduzir versos, criar estrofes, expandir o vocabulário ao ler poemas de outrora. tão atuais, diria, se pudesse dizer. angústia? de fato, não sei ao certo o que é. talvez nunca saiba muita coisa, se é que é possível saber. o que penso é o que me vem ao papel. não o contrário. não sei pensar sem esse método. nem ao menos sei o que sinto. outro dia me apareceram com a palavra “abandono” como se tivessem sido abandonados. nunca foram, nunca serão. somente a morte há de separá-los. por outro lado, sempre pensei no descaso como pior destino. “descaso”. aposto que é uma daquelas palavras… cujo significado, sabe? não se pode apreender de primeira. acho que é por isso que escrevo. as pessoas podem ler duas vezes ou mais. podem parar, pensar, criticar, avaliar, responder. jamais pensei que viraria escritor em minha vida adulta e que me tornaria minimamente influente aos que me cercam – negativa ou positivamente -, mas sempre levando em conta minhas construções. o descaso, porém, carrega consigo uma significação maior, pois é o fim de toda indiferença.

fui abandonado com uma dose de descaso

talvez seja a melhor forma de dizer aos filhos da puta que se foram que ainda sofro com eles, que ainda me preocupo – apesar de toda indiferença. de qualquer modo, minhas palavras choram, “escrevo como quem morre” de desgosto, descaso e abandono. mas jamais pensei no sofrimento como algo que amarra o peito até dilacerá-lo. nunca soube, também, que o peito só poderia suportar esse dilaceramento até que eu mesmo tivesse vontade de dilacerá-lo… feliz é quem finge felicidade, pois todo mundo vive na inflexão da tristeza. ilusão desta sociedade liquefeita e que se liquefaz aos jorros, às lágrimas.

e são terríveis, devo dizer, estas emoções incontroláveis, que resultam de uma mente repleta de lembranças inúteis, cujo cerne está na dimensão da angústia e desprazer. este frágil e precário estado em que me encontro, frente ao horrível e pacífico vazio da morte, é, enquanto deprimido, meu único espetáculo; meu antro de passividade; aplauso para a miséria; aceitação pela não compreensão. tudo que me resta de tempos idos se esgota pelo grande engolir do nevoeiro solitário. e devo enfrentá-lo sozinho. devo transitar entre aqui e lá com maestria e irrelevância, porque não sou de lugar algum. pertenço aos próprios reflexos de um espelho em frente a um outro espelho. imagem opaca? não sei. nunca me disseram o que represento. mas não tenho interesse em saber, porquanto não represento absolutamente nada para mim, senão a fraqueza de alguém que sucumbe a seus demônios, à sua angústia. luto, é verdade, mas a ruína está aqui dentro. tão perto, que meu coração, arrancado por mãos trêmulas, pulsa alheio ao corpo apático… tão longe, que a silenciosa agonia – perceptível somente no abatimento – se manifesta no semblante, sugado, em deleite, pelos atrativos da melancolia. sentimento nobre, inerente ao humano… maldição pensante, que se materializa em palavras. estas, único instrumento visível à luz escura e infinda de meus testemunhos: preciso me exorcizar. mesmo que qualquer ferramenta seja impotente à iminente derrota, preciso atenuar meu sofrimento. e num tempo mais oportuno, caso a sórdida e mórbida sensação de que nada dará certo me liberte de seus trabalhos, talvez volte a me tratar gentilmente; talvez pare de esconder minhas lágrimas como se fossem vergonha; talvez pare de desejar escondê-las. se esta mente, sem assistência e doente, se curar, é possível que reveja meus pensamentos. por ora, minha desventura é a existência… portanto, esta imagem opaca e oscilante, que plana em sua autodestruição como se fosse um repleto trem que descarrila, se diluirá mais e mais, se ausentando – sem jamais sumir – até que não haja poesia que salve esta criatura do fim.

anômalo

ninguém me ama quando estou ausente,
pensando em como encerrar a agonia…
ninguém me ama, imerso na melancolia,
perdido numa neblina constante e doente.

ninguém me ama quando, aparentemente,
estou triste, sorrindo por todos os lados,
numa anomalia – os abandonados –
ninguém me ama quando sou, tristemente.

ó tristes que me acompanhais,
tanto sentir… e escolheis o tormento…
nobres filhos da tristeza, do desalento,
não escolheis a miséria, não a levais!

ó tristes que me vedes (mas não fixais),
tão influentes foram as alegrias – ao vento
– para descaber desventuras do sentimento,
que não posso dizê-las fracamente mortais.

todo meu mistério deixo que tu desvendes

todo meu mistério deixo que tu desvendes,
pois só a ti posso dizer que cuido e adoro.
teu mistério, jamais o esquecerei, não o ignoro…
e sei que o meu tu amas e compreendes.

e tudo é maravilha, portanto, quando estendes
sobre mim todo teu lindo amor sonoro.
e, por amar-te tanto e sempre, eu sempre coro
aos beijos com que vez ou outra me surpreendes.

se eu sofro, um alento à vida em ti encontro,
pois toda alegria repousa sem confronto
no sorriso que sempre me acalma.

se tu sofres, a tristeza é atenuada quando percebes
que enxergo além dos contornos, além da alma…
e então o amor que tu dás é o infinito amor que recebes.

enquanto competem

enquanto competem
os mais bonitos
os mais inteligentes
os tolos e os egoístas
os mais preenchidos pela cultura
os mais felizes
os mais aflitos
 
enquanto triunfam
em teus lábios
os lábios de outro
o doce marulhar
das fissuras dos teus
irrompe em beijos
ensanguentando
os impudicos lábios do amante
 
competem com os tolos
todos tolos e sifilíticos
todos desbotadamente felizes
todos individualistas
insanos
aflitos
e para sempre amaldiçoados
na clausura invisível
de suas existências indiferentes
 
o que sou
– perguntas
 
sou resultado do sexo e do dinheiro!
de teu corpo aberto e ferido de tanto
foder a vida alheia!
 
sou a miserável parcela
dos que ainda querem fazer alguma
coisa com a vida
 
jogá-la fora
vivê-la
corroê-la com arte
e depois fodê-la
estão fora de cogitação
 
tudo dá num mesmo vazio
num final niilista e inseparável
 
fim que só traz dor a quem fica
que só traz agonia a quem vive
que se faz destino para dar significado
a uma vida sem significação

para dizer que te lembraste

se me deixasses aberta uma ferida
que sangrasse sempre sem cura,
que destruísse minha vida
e alimentasse a loucura;

se me beijasses e eu te beijasse,
antes que nos consumisse a lonjura,
e teu veneno por mim se espalhasse
jamais cessando a maldição e a ruptura,

te daria um beijo e repousaria contente,
porque estarias feliz e sorririas só…
sem mim, que sofro, sozinho, da mente,
e então voltaria, também sozinho, ao pó.

o amor em ti germinaria docemente
a flor que não murcha e tanto perfuma…
e, com outro, depositaria a flor – amargamente,
na alcova desta alma alguma.