sem dúvidas, a cântaros, teço palavras que vêm a mim como iluminação, rasgando meu céu cinzento, carregado de uma chuva que não virá, inundando de lágrimas o desespero em meu semblante, esquecido, perverso, triste. escrevo, portanto, para me despedir e me aproximar da angústia, que tanto insiste em me perturbar – sem que eu a afaste ou sinta sua falta.
estou em meu quarto arranjado, sem janelas, sem portas, sem vida. aqui, somente eu e o caderninho perambulamos noite afora – com uma breve luz soluçante, que, de tempos em tempos, resolve escapulir de minha vista. e isso só se resolve com um tabefe na pobre luminária, que nada tem a ver com minha vazia melancolia.
escuto o tilintar da chuva batendo em algum cano do outro lado da parede. sei, por isso, que meu quarto fica numa das esquinas de uma casa ou edifício pequeno. mas cresci aqui, feito Kaspar Hauser, e pouco sei das coisas que me reservam lá fora.
enquanto isso, escrevo meus textinhos. sempre o mesmo texto revisitado, todavia. espero, um dia, talvez, poder sair da clausura, do cárcere em que me meti a contragosto para tentar espantar o sofrimento. porém de nada adianta a reclusão quando se sofre por conta dos outros. é preciso erguer-se e batalhar, coisa que já não posso fazer sozinho.
a angústia me abala, me condena, me satisfaz. e neste texto – quase “Sacher-Masochiano” – esclareço a dúvida maior: o que me angustia? isso é muito simples, mas é provável que não haja resposta óbvia para essa questão: quando saí de minha casa para viver nesta jaula, decidi que pouco comeria e não teria contato com as pessoas. aqui, me alimento do que aparece, porém, não sei como, a comida simplesmente surge para mim enquanto durmo. quando estou com fome, fora desses horários, me contento com algum roedor que sai das falhas na parede, do piso, e até do teto. quem entra jamais sai deste quarto arranjado. e o gemido que eles soltam quando dou a primeira mordida é, sem dúvidas, meu maior triunfo, minha mais orgulhosa glória.
a chuva está cessando, as gotas de outrora deixam de tecer manchas nas paredes de tijolos, e o sono vem a mim como se eu mesmo fosse parando conforme o parar pluvial. escrevo menos. com menos contundência e importância. o que escrevo é vago e repetitivo. meu céu cinzento, dilacerado tal qual minha alma despedaçada, é meu único motivo de riso. e rio, rio, rio feito criança frente às primeiras palavras obscenas que permeiam seus ouvidos aguçados. também escuto muito. sei que alguém me observa, alguém me escuta e me controla. sei que é tudo um espetáculo às custas de um. mas nada posso fazer. o que faço é escrever – e já não me contento com o que produzo.
mas o que me angustia se não há contato humano? o que me dói se meus prazeres são satisfeitos por outrem – sem que eu os peça, exija ou implore?
a vida. o mero existir me atordoa, pois o vazio intrínseco a ela – e presente na morte – surge antes que eu possa desfrutar dos momentos, antes que possa achar um amor e sair da redoma em que estou imerso. mas a vida me fez niilista, não fatalista. não quero morrer. só preciso de um alívio para o tormento, o iminente fim comum a todos, sabendo que esse alívio é, também, o próprio fim. portanto, a vida é uma sentença de morte… e a chuva, a cântaros, volta a soar nos canos externos à parede.