segredo

esse cheiro acre de matéria insólita e secreta
arde minha face como espelho corrosivo:
não me observo, me desdenho (e sou incisivo!):
minha qualidade é minha miséria predileta.

mergulho fundo em tua imagem, querida,
e em meus abraços ela se perde…
sou irritante, sou a matéria insólita da vida.
sou dúbio, meu vazio me mede…

às vezes me distraio no ofegante respirar.
e inalo, engulo, vomito meu ensanguentado
e imensamente triste coração apedrejado –
no instante em que minha alma mais deseja
[se matar.

apunhalado

a vida é um vício árido e vazio,
cujo fim está em meu coração:
o punhal, triste, limpo, sutil,
atravessa meu peito e solidão.

deixa-me sangrar com medos
o sangue que espirra e escorre!
apunhalo! tensão nos dedos!
peito dorme, sou eu quem morre.

aspirem, vamos! aspirem o sangue!
sintam o aroma e o doce frescor!
pois nada romantizo, sou exangue!
mas a morte veio a mim como 1º amor.

jogarão meu corpo, se descoberto,
ao mar! o sol se afogará! será noite…
mas, se o descobridor for esperto,
se matará antes de reviver meu açoite.

grito

não sou expoente
me viram vagar por aí
destruído – tanto pela loucura
quanto pelo desamor –

a solidão me corrói
não sou expoente
e caminho pelas ruas
deste bairro burguês
procurando qualquer coisa
que me desperte do sonho
chamado vida –

mas nada virá
sei que nada virá
pois só vêm a nós
quando não parecemos anjos
e pareço um, apesar
de ser uma forma disfuncional
– balofa, rechonchuda –

(canto pois o instante é triste
canto pois sofrimento existe
e a palavra não deve desperdiçá-lo
e o esfarrapo e as profundas olheiras
não podem negá-lo
canto pois o instante é isso)

não sou expoente
e jamais serei
mesmo que expoentes mudem conforme
o tempo e a pessoa no poder –

à minha carcaça, desbotada e suja
só é cabível o lamento
alguém que poderia ir tão longe
sem projetos, sem grandes expectativas –

não sou expoente
e por isso flagelo minha derme noite após noite
sem que percebam minha angústia –

ou então, se percebem
apenas disfarçam – ou se exaltam
constrangendo a mim e
consequentemente, por minha culpa
a eles –

ainda vago
e meu meu meu eu se fode
numa vala qualquer
de uma rua sem saída, um beco
como minha existência –

viver é uma sentença de morte
e meu porre está acabando –

é tarde, não vejo ninguém
mas sei que me vêem
desperdiçando meu talento
com poesia tóxica, com álcool, orgias
(sem jamais consumir o ópio do povo
para não abusar dos entorpecentes) –

entre dois postes de luz, me ilumina a carência
a solidão me corrói e meu cérebro esvaziado dilata
a histeria no semblante de outrem –

mas nada vejo
estou muito ocupado em naufragar
e consumir minhas lágrimas despejadas
nesta bebida choca, escutando
como desaparecer completamente –

Hauser

sem dúvidas, a cântaros, teço palavras que vêm a mim como iluminação, rasgando meu céu cinzento, carregado de uma chuva que não virá, inundando de lágrimas o desespero em meu semblante, esquecido, perverso, triste. escrevo, portanto, para me despedir e me aproximar da angústia, que tanto insiste em me perturbar – sem que eu a afaste ou sinta sua falta.

estou em meu quarto arranjado, sem janelas, sem portas, sem vida. aqui, somente eu e o caderninho perambulamos noite afora – com uma breve luz soluçante, que, de tempos em tempos, resolve escapulir de minha vista. e isso só se resolve com um tabefe na pobre luminária, que nada tem a ver com minha vazia melancolia.

escuto o tilintar da chuva batendo em algum cano do outro lado da parede. sei, por isso, que meu quarto fica numa das esquinas de uma casa ou edifício pequeno. mas cresci aqui, feito Kaspar Hauser, e pouco sei das coisas que me reservam lá fora.

enquanto isso, escrevo meus textinhos. sempre o mesmo texto revisitado, todavia. espero, um dia, talvez, poder sair da clausura, do cárcere em que me meti a contragosto para tentar espantar o sofrimento. porém de nada adianta a reclusão quando se sofre por conta dos outros. é preciso erguer-se e batalhar, coisa que já não posso fazer sozinho.

a angústia me abala, me condena, me satisfaz. e neste texto – quase “Sacher-Masochiano” – esclareço a dúvida maior: o que me angustia? isso é muito simples, mas é provável que não haja resposta óbvia para essa questão: quando saí de minha casa para viver nesta jaula, decidi que pouco comeria e não teria contato com as pessoas. aqui, me alimento do que aparece, porém, não sei como, a comida simplesmente surge para mim enquanto durmo. quando estou com fome, fora desses horários, me contento com algum roedor que sai das falhas na parede, do piso, e até do teto. quem entra jamais sai deste quarto arranjado. e o gemido que eles soltam quando dou a primeira mordida é, sem dúvidas, meu maior triunfo, minha mais orgulhosa glória.

a chuva está cessando, as gotas de outrora deixam de tecer manchas nas paredes de tijolos, e o sono vem a mim como se eu mesmo fosse parando conforme o parar pluvial. escrevo menos. com menos contundência e importância. o que escrevo é vago e repetitivo. meu céu cinzento, dilacerado tal qual minha alma despedaçada, é meu único motivo de riso. e rio, rio, rio feito criança frente às primeiras palavras obscenas que permeiam seus ouvidos aguçados. também escuto muito. sei que alguém me observa, alguém me escuta e me controla. sei que é tudo um espetáculo às custas de um. mas nada posso fazer. o que faço é escrever – e já não me contento com o que produzo.

mas o que me angustia se não há contato humano? o que me dói se meus prazeres são satisfeitos por outrem – sem que eu os peça, exija ou implore?

a vida. o mero existir me atordoa, pois o vazio intrínseco a ela – e presente na morte – surge antes que eu possa desfrutar dos momentos, antes que possa achar um amor e sair da redoma em que estou imerso. mas a vida me fez niilista, não fatalista. não quero morrer. só preciso de um alívio para o tormento, o iminente fim comum a todos, sabendo que esse alívio é, também, o próprio fim. portanto, a vida é uma sentença de morte… e a chuva, a cântaros, volta a soar nos canos externos à parede.

o beijo

a cada dia, um novo sofrimento,
e em sigilo permaneço
embriagado em meu tormento.

com esta provocada extinção,
sozinho, adoeço
a mente, o corpo e coração:

e desejo, mais que tudo, encerrar
o pranto, a dor, a melancolia…

mas se a solidão deixar de me tocar,
beijarei os lábios da agonia.

soneto

desembaço o espelho inexato
– feito eu – e visito terrores
enquanto desato
a chorar o que é meu:

eu não sou – e em ser desretrato –
reflito?, portanto,
em próprio embaraço
oposto desembaço do eu:

vejo a mim em perna abraçada.
enlace fraco. vista atordoada.
reflexão engavetada. ressentida.

em superfície naufragada,
minha história, reprimida.
sou o espelho? e não dou conta da vida…

árvore do entendimento

Piso neste chão deplorável, imerso na insanidade de outros, fervor humano, vazio absoluto. Piso aqui e ali como quem vive – se ao menos houvesse vida em mim -, e escalo, com pés descalços, uma pequena árvore que renasce à luz que me escurece. Não há estradas que me guiem. Somente portas fechadas caminham em minha direção. Posso, é verdade, caminhar, mas sempre acabo no princípio: precipício, meu poço de lamúrias.

Minhas frustrações começaram muito cedo, quando resolvi rebater tudo que discordava. E, tolo como era, numa infância introspectivamente doída, decidi solucionar as agonias com novas agonias. A História Sem Fim, de Ende, era tudo que me acompanhava, e eu acompanhava Bastian em sua jornada com Fushur e Atreyu. Mas isso não importa. Devo me importar com o passado? Tudo que ele fez foi criar uma triste identidade, da qual não me orgulho e pela qual não me sinto representado. Sem rumo, devo dizer. Caminho em direção à minha torre de marfim… mas ela virou elefante branco, e já desisti de Fantasia – sem ao menos dizer adeus.

Existe uma árvore aqui. Converso com ela e desembaraço seus galhos. Assim, ela me retribui com frutos. Sei que, ao terminar, ela ficará mais livre, viva e bonita, e, com sorte, até receberei um agradecimento. Mas não faço isso por interesse. Faço porque gosto de árvores – e esta é a minha única companhia. Então, ela germinará umas mudinhas, e, talvez, verei um jardim florescer aqui, ao meu lado, antes de morrer. Se houver alguma certeza, o vento a dispersará e trará de volta a inocência que perdi há tanto tempo.

“Ecoem, folhinhas, ecoem nos meus pés e balancem muito enquanto voam – da árvore, precipício, ao fim… ecoem e aproveitem o voo, pois dependerão de outrem para voar novamente – e talvez nem se lembrem do magnífico bater de suas asas.” – sempre pensei. E nunca tive amor que me bastasse – pois nunca bastei ao amor. Mas aquela árvore sempre me atraiu com ares afetuosos, como se seus galhos desprendidos pudessem me agarrar a qualquer instante para um longo abraço. Talvez nós dois precisássemos de um.

Mas agora piso neste solo sólido e duro. Árido, como minha devastação; inacabável como minha tristeza. Agora, sim, posso dizer que estou certo… não haverá jardim. A solidão me consome, me corrói e me aniquila aos poucos. Decrépito, ridículo e marginalizado, sou poeta das coisas mortas, da escuridão, do fim. Não posso negar. A árvore, agora vejo, perdeu todas as suas folhas. Talvez voltem em outras estações, mas, para sempre, terei de criar espaços para os vazios que elas deixarão.

não me carregues

não me carregues em teus braços esta noite.
não valho o esforço, teu ímpeto.
meus olhos amargurados e tristes, luzes da alma,
são bonitos, alguns dizem, mas não transmitem
a alegria necessária para acabar com o sofrimento…

decerto não sou sábio, sadio, estoico.
sou delicado, dizem, tal qual miséria intangível,
que escapa às mãos feito areia seca…
pois sou seco também, além deste ar sincero…

escapam-me palavras, e, por tanta indecisão,
decido não escrever para ti, porque,
não me resta sanidade, não posso te dar toda ela,
sem ressentimentos, sem conversa jogada fora,
sem poesia meia-boca, mas sempre com hora marcada
para voltar para casa aos prantos,
por ser erro, por ser subversivo, dominado pela cólera melancólica…

ouve, não me carregues em teus braços esta noite.
não valho tanto assim, não valho o esforço.
meus olhos, tristes e derrotados, anunciam
meu derradeiro adeus, que será, para sempre, metamórfico.
deixará de ser o que parece ser em pouco tempo.
deixará de ser dor e se tornará alívio assim que encontrares
alguém que faça tudo valer a pena.

escapam-me palavras, é verdade. nem sei se digo coisa com coisa.
o importante não é o que digo, mas o que deixo de dizer.
portanto, deixe-me ir… para teu bem…
para meu alívio – e teu futuro…
para que… teu amor floresça…
e finalmente existam flores em minha alcova.

sonho

nunca tivemos uma fluida conversa,
e as palavras que de mim floresciam,
sempre estúpidas, sempre nasciam
do que nunca te deixava imersa,

porque nunca fui do tipo atraente.
talvez meio bobo, meio despreparado,
talvez desinteressante, um tanto mimado,
menos do mais e mais irreverente.

no entanto, ainda sinto a pontada no peito,
o gaguejar e o enrubescer – como se fosse especial,
pois és especial para mim, de qualquer jeito.

e, apesar da quietude e desse desinteresse glacial,
continuas sendo importante quando me deito –
até a hora que acordo, passando pelo sonho ideal.