30 de Setembro, 2017

Já não me recordo, ah, não me lembro!
das incontáveis existências incansáveis,
dos Anjos nefastos que me atordoam
nesta chuvosa madrugada de setembro…

À espreita, permanecem silenciosos,
desamorados, desonestos, desalmados!
Ofendem-nos, agridem-nos nessas vielas
escuras e infestadas de ratos audaciosos…

E não diga que jamais algo será dito
sem significar o que se escuta ao se dizer.
Desespero é findo, mas deve-se batalhar ou sofrer,

pois as sombras da Peste se propagaram
e o amor se desinstalou por ideais já gastos
dos anjos que nos alimentam aos Anjos nefastos.

à iminência de um deslize

caminhando da plataforma da estação
até o apartamento de meus pais,
o vento bate no rosto e o rosto
percorre tudo e todos de ouvidos
muito fechados para poesia cotidiana.

o rosto, por sua vez, caminha
e caminha minuciosamente,
pra prestar bastante atenção
no que se vê nas coisas não vistas.

chego em casa e desligo o celular.
estive escutando música o dia inteiro
e, portanto, não pude atentar para os
detalhinhos sonoros e detalhões barulhentos.

deito um bom sonho lúcido
e penso um pouquinho
no que tenho feito por mim:
o vento entra pela janela,
bate no rosto
e o rosto vê enfim…

então, me surpreendo com A Via Láctea, da Legião,
ecoando em minha cabecinha anuviada.
A leveza das coisas coisas acaba por ressoar,
e já não me sinto sozinho quando tudo parece estar perdido.

Arte

lascivos não respeitaram minha sexualidade,
desfizeram sensos, intensificaram o impudor.
estupraram animais, crianças sem identidade,
e tudo isso como forma de amor…


corpos crus, posando para artistas nus,
e a inversão dos bons costumes, da tradição.
quem inventou o homem e a mulher?
(Deus perdoa, mas nós não).


cartazes midiáticos de afeto interferido:
esqueci-me de esquecê-los e agora pago o preço.
ruídos aprisionados num caixote deferido:
quem inventou o Natural, diga-me, que me esqueço.


o sagrado sangra! porque só nós sabemos o que é arte!
temos teorias, filosofias e críticas como mensura!
e o que estabelecemos, veja! está em toda parte!
zoófilos, narcóticos, pedófilos, eróticos?

rasguem os livros, queimem os quadros!
e provem que a melhor medida é a censura.

 

 

 

desolados

não nos esqueçamos dos que nos surpreenderam
com cordas à nossa face única do medo.
não nos satisfaçamos e nos recordemos sempre
do aguaceiro que manchou nossas roupas, tingidas
de um anil triste, repleto de um irrepleto inexato,
desfigurado, deslembrado e adoecido.

o que nos nutre jamais será piamente esperançoso,
pois deslizes acabam nos importunando com severa
profundidade e mentirosas alegações:
disseram-me que a vida seria feita
de alegrias austeras e cheias de corações simbólicos
e simbologias cardíacas:
as senhoras decassílabas têm as espáduas doídas.

passamos sempre pelas ruas, deixamos Eu de lado,
e conversamos às árvores mortas palavrinhas
de cunho religioso… porém, nunca foram piamente
esperançosas de que voltaríamos três dias depois.
após o sexto dia, nunca mais voltamos.

retiremos os ciprestes deste reduto fraturado,
porque não há mais resistência ou raízes a sanar.
temos poder, mas não temos todo o resto.
onde estará nosso filho? que filho? já não nos lembramos…

agrediram-no. não vi o sujeito. foi tudo muito rápido.
corpulento, sei apenas. mas não perguntes, não perguntes
onde estará enforcado ao término da noite.
agora que somos maliciosos, não nos matemos,
amemos um ao outro como amei a mim por tanto tempo.

não. falar de amor é pouco cuidado hoje em dia.
plantei uma mente disfórica, e colhi um imprevisto
jato de sangue… meus braços, agora, choram, abertos,
e a neblina não me permite ver adiante.

fragmentos de fragmentação chocalham meus ossos ocos.
eufóricos instantes de plena satisfação incendiados
pelo interno desuso de uma alma caída em consternação
após tanto tempo de sóbria importância cantam meu canto.

mas chegada a noite, nos dispersamos. vejo-te enforcado
numa árvore, os braços sujos, viscosos, de sangue.
não choro, não grito. apenas pondero a morte de meu filho
corpulento. o agressor esteve entre nós e nunca percebemos.
pois, não nos esqueçamos, não nos recordemos.
os ratos passeiam, os gatos se escondem:
parece ser a lei natural do silêncio e inexistência…
e aqui permanecemos sem deixar nenhum vestígio.

Os amados

Sabes que não restam lágrimas
para chorar pulsos não pulsantes:
mas antevendo sofrimentos excessivos,
os amados foram antes,
levando consigo as crianças que fomos,
as vivências e sorrisos que trocamos.

Ah, esse mal enorme e atordoante,
que ousa ousar minha resistência…
No peito, onde a saudade dorme,
tudo é frio: sutil incandescência
entre corações que jamais se encontrarão.
No núcleo de abraços, só resta carência.

E inconsoláveis lembranças atormentam
a mente inquieta dos que tentaram
sanar os males das feridas abertas
por todos que se foram e aqui passaram.
Pérfida vida, menos que os que não amam,
a saudade bate mais nos que sempre amaram.

Desperto

Às noites difíceis, num duro colchão
esverdeado, coberto com um fino
lençol branco, desperto de um sono
excessivo, que me consome e escraviza.

Nessas tristes noites, costumo abrir a pequena
janela engradada para ver o céu,
geralmente livre de nuvens e muito mais
azulado que os dias anteriores à minha vinda.

Um enfermeiro caminha a passos curtos,
verificando, em todos os quartos, se todos
ressonam seus sonos controlados. Sonos emocionados
e emotivos, que nunca mais teremos…

Depois da medicação, até fico mais sonolento,
mas sou muito esperto para me submeter
ao tratamento por completo.
Destoo, me finjo dormido e então vou conversar
com o estagiário, que, a esta altura, ainda é amável
conosco, os internos.

Porém, logo o enfermeiro-inspetor chega,
manda-me deitar e vigia meu sono.
Azar o nosso. Vidinhas de bosta, eu considero.
Queria ser livre, mas livre nunca estarei,
pois se não fosse confiscado de mim aqui,
seria em qualquer outro lugar.

As noites se repetem e a libertação nunca chega.
Ainda que seja diferente para mim, ou que me ache
diferente dos demais, sou igual – aos olhos psiquiátricos e  sociais.
De que servem minha amabilidade, minha educação
e inteligência?

Não posso sair, repulso os outros internos…
repulso a mim mesmo e a forma como cheguei aqui.
Um novo dia virá, virá… trazendo mais infortúnios, deduzo.

Depois do breve café, ao raiar do dia,
me deito esperando a morte.
E virá, um dia virá.
Espero que antes do fim desta castração de sentimentos,
espero que antes da lobotomia ou dos choques
que sempre me prometem quando arranjo confusões.

Para isso, todavia, ainda guardo minha lâmina.
Carrego-a comigo para todos os lugares sem que saibam.
Ninguém a vê, somente eu tenho olhares para ela.
É como um dos inspetores… meu pequeno
“guardinha” pessoal, que me pune e pisoteia
quando algo de errado, para mim, acontece…

Infiltro-me, pernóstico, no panóptico desta
prisão e desligo as câmeras.
Mas já sabem que fui eu. Sempre faço isso
na esperança de correr, correr, correr..
Porém, toda noite voltam os inspetores para me vigiar.

Então,
me
alimentam
com mais
remédios…

enquanto isso, todos dormem sonos curtos, quase espasmódicos,
em seus confortáveis colchões, com cobertores quentinhos,
se preocupando apenas em acordar no dia seguinte, vivendo
vidinhas de bosta. Pelo menos existe algum movimento
nessas noites nubladas, pela janela.